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É o momento em que os amantes da liberdade devem sair à rua para mostrar que ela pode estar em causa

Entrevista | Adolfo Mesquita Nunes


TPP


Adolfo Mesquita Nunes, advogado, administrador e político, lançou o seu primeiro livro, “A Grande Escolha”, no final de 2020, no qual se debruça sobre a defesa da globalização e abriu debates vivos na sociedade portuguesa. O PT Post não quis ser indiferente à discussão e esteve à conversa com o autor sobre a sua obra e visão sobre temas do mundo moderno.


Pode ver a entrevista em video aqui:




PT Post Temos acompanhado com interesse toda a discussão que tem surgido em volta do teu primeiro livro, A Grande Escolha. Começo por te perguntar, para quem não esteja familiarizado com o teu livro, o que será o caso de muitos leitores nossos, qual é a tua grande escolha? Para quem escreveste este livro e porquê agora?


Adolfo Mesquita Nunes O livro procura demonstrar que a globalização, que a economia de mercado foi o maior, ou é o maior, instrumento de progresso que a humanidade alguma vez conheceu. O livro reconhece que a globalização traz vários desafios que são difíceis para algumas camadas da população. E o que o livro procura dizer é de que forma é que esses desafios podem ser vencidos e que a forma de vencer esses desafios não é voltar atrás na globalização, não é voltar atrás na economia de mercado, não é aderir ao proteccionismo, não é aderir ao fecho de fronteiras, não é aderir aos muros e às barreiras entre as economias, mas antes melhorar os instrumentos de globalização. E, portanto, o propósito do livro, no momento em que os populismos crescem, no momento em que muitas pessoas têm um sentimento de despertença, de injustiça e de desigualdade, é procurar alertar para que as soluções apresentadas pelos populistas serão ainda piores e trarão mais problemas do que aqueles que hoje enfrentamos e que podem ser vencidos de outra maneira.


PTP Ao longo do teu livro que procura desmontar vários argumentos, muitos deles abraçados por movimentos cívicos e políticos populistas, através do recurso a dados numéricos. Porque é que essa linha argumentativa não chega ao grande público? Porque é que o populismo cresce: é apenas uma questão de uma narrativa mais fácil e simplista?


Foto: CC BY-SA 4.0 by Isabel Santiago

AMN O populismo tende a crescer, como a história demonstra, em momentos de crise, em momentos de disrupção, em momentos em que partes ou camadas da população se sentem perdedoras de um movimento que está a fazer algumas outras camadas da população vencedoras. E o populismo é hábil em lidar com esses sentimentos, em exacerbá-los e em criar narrativas que os confirmem de forma dramática e apocalíptica. Por isso é que, mais importante do que os números sobre a desigualdade, é o sentimento que as pessoas têm sobre a desigualdade. Há países que têm a desigualdade a diminuir, mas em que as pessoas sentem que a desigualdade está a aumentar: sentem que isso pode acontecer no seu caso particular, e sentem-no porque um discurso populista vai reforçando e vai minando esse sentimento. Os números não chegam, estou de acordo.


Porém, só é possível fazer política, e só é possível chegar a soluções, e só é possível apontar caminhos, conhecendo a realidade de forma objectiva e com os números, e dizendo e tratando as pessoas como adultas, explicando-lhes de que forma é que podemos resolver os seus problemas. A minha insistência nos números é por achar que a política tem que ser feita com argumentos, tem que ser feita com razão, tem que ser feita com racionalidade e não com emoções, com sentimentos e desligada daquilo que é a realidade.


PTP E achas que há disponibilidade das pessoas para ouvir essa linha argumentativa? Ou seja, creio que, para tem tenha lido o teu livro, seja fácil perceber o que estás a argumentar. Isso é igualmente alcançável no discurso falado? Como é que o farias?


AMN Penso que o livro está escrito de uma forma bastante acessível para que as pessoas possam olhar para os números com interesse e não de forma entediada. E a escrita está feita dessa forma e o facto de o livro ir na terceira edição comprova que acertei ou, pelo menos, que o livro não é chato nessa matéria. Os primeiros dois capítulos do livro mostram, com muitos números, que a globalização é um instrumento de progresso. Vêm na linha de outros livros que têm sido também êxitos de vendas, como seja o “Enlightenment Now” do Steven Pinker, o “Progress” do Johan Norberg ou o “Factfulness” do Rosling, o que mostra que, ao contrário do que possamos pensar, as pessoas estão muito interessadas neste estilo de livros, que lhes possa transmitir uma luz sobre aquilo que efectivamente está a acontecer no mundo e mostrar-lhes que as coisas não estão tão más como elas pensam, ou que estão bastante melhores do que elas pensam. O ponto aqui é como é que, no discurso político, se converte a razão, os argumentos, os factos, num discurso aspiracional, num discurso que motiva as pessoas. Procurei fazê-lo escrevendo o livro, de forma a que as pessoas pudessem sentir-se motivadas para a defesa do mundo global e descobrir um sentido aspiracional; o livro não é uma colectânea de estatísticas.

Foto: CC BY-SA 4.0 by Isabel Santiago

PTP Um pouco na linha da questão em torno dos populismos: Porque é que crês que se retorne recorrentemente a práticas que já provaram não ter o resultado pretendido, tal como acontece no caso da imposição de tarifas aduaneiras?...


AMN O populismo do século 21 tem sido muito associado à globalização, a uma resposta à globalização. E isso tem o seu quê de razão. A globalização tornou o nosso quotidiano repleto de diversidade, todos os dias nos confrontamos com coisas novas, com novas nacionalidades, novas culturas, novos produtos, novas inovações, novos concorrentes, novas disrupções: esta abertura vertiginosa à mudança gera um sentimento de instabilidade, de preocupação e de insegurança nas camadas da população que não estão a ver os seus rendimentos aumentar tanto quanto aumentaram em décadas anteriores, e que passaram pela crise das dívidas soberanas e estão agora a passar pela crise decorrente da pandemia. Este é o tempo certo para o ressentimento, para o sentimento de injustiça, para o sentimento de desigualdade, sobretudo num tempo e num contexto de Estado Social a que nos habituámos nas décadas de 70, de 80 e 90, em que tínhamos encontrado um modelo de Estado e de modelo social que nos protegia e nos dava uma rede de protecção que garantia a nossa prosperidade. Tudo isto foi colocado num terreno mais inseguro mais instável, um terreno muito propício para o populismo. E por isso é que eu procuro também explicar no livro por que razão é que não podemos olhar apenas para esse lado da globalização, que tem os seus desafios, mas que temos que olhar para tudo aquilo que a globalização nos trouxe. E é por isso que é útil comparar o que era a esperança média de vida há vinte anos e agora, a quantidade de bens e serviços que temos ao nosso dispor antes e agora, o preço dos bens antes e agora, o acesso a bens de saúde antes e agora, as vacinas antes e agora: para mostrar que a globalização tem esse lado positivo. Mas, de facto, nesta explosão de diversidade que a globalização nos traz, há este sentimento de insegurança e, quando chega uma crise, há uma tendência para se procurar encontrar um inimigo externo, ou uma causa, que sendo eliminada, resolveria todos os nossos problemas. Por isso é que os populistas olham muito para a globalização como sendo a razão de todos os problemas. E isso acontece tanto à esquerda como à direita, tanto a extrema-direita como a extrema-esquerda acusam a globalização e a economia de mercado livre e global de ser a razão pela qual os países estão a viver os seus problemas

“Essa laicização da sociedade, na qual as novasgerações crescem, como que as deixa sem referências espirituais e morais. E é nesse quadro que eu acho que o ambientalismo tem surgido como resposta.”

PTP Acredita-se, ou acreditou-se, que o crescimento e desenvolvimento económico contribuiriam para sociedades mais livres e democráticas. Que pensas sobre essa relação, especialmente considerando a análise que fazes ao papel da China no mundo?


AMN Numa perspectiva histórica é preciso dizer que nós crescemos, no século XX, na única altura da história da humanidade em que a China não foi uma superpotência. E por isso a China, quando muito, está de regresso, não está a surgir como uma potência. Aquilo que é evidente, e penso que a União Europeia tem dado sinais disso, é que, nos últimos anos, a China mudou a sua abordagem e a evolução que vinha fazendo, embora de forma lenta, no sentido do incremento das liberdades cívicas, políticas e económicas no seu território.


Houve uma inversão nesse movimento lento, uma inversão que é talvez simbolizada pela circunstância de já se terem removido os limites à eternização presidencial de Xi Jinping. E, nesse exemplo, corporizam-se várias outras involuções da China e também uma mudança para uma diplomacia incisiva que a China tem feito face a países e face a empresas. O que tento explicar no livro é que há duas questões distintas. Uma é saber como é que devemos lidar com o comércio com a China e, aí, o que eu procuro dizer é que o livre comércio com a China é muito benéfico para todos os países, e é sobretudo muito benéfico para as camadas mais vulneráveis dos países: são os mais pobres que beneficiam do livre comércio, porque os preços ficam mais baratos e as classes mais baixas e mais vulneráveis têm acesso a mais bens e a mais serviços; quanto mais barreiras alfandegárias forem impostas, mais altos ficam os preços e mais vulneráveis ficam essas famílias. Uma outra questão é saber como é que lidamos com o investimento chinês nas nossas economias. E, aí, o que eu procuro dizer é não faz sentido que as nossas economias tenham caminhado no sentido da sua privatização, no sentido de ter a economia a ser regida por critérios de mercado, e por critérios empresariais, para agora podermos aceitar que estados estrangeiros como o chinês venham nacionalizar a nossa economia, já não ao abrigo, ou não em função da nossa nação, mas em função da nação chinesa. Por isso, acho que faz sentido o esforço que a União Europeia está a fazer: criar mecanismos de filtragem de investimentos estrangeiros quando os investimentos estrangeiros estão ao serviço de uma estratégia política. E aquilo que acontece com a China é que a sua economia é uma economia pública e é uma economia cujo sector privado está muito dependente e muito funcionalizado face ao interesse político.


PTP A Grande Escolha não se esgota no livro, sendo que lançaste um podcast em que tens desenvolvido questões que nascem de assuntos que abordaste. Como tem sido essa experiência e o que é que retiras do formato podcast e do diálogo livro-podcast?


AMN Quando escreves um livro, tens três ou quatro livros ao lado que não escreveste, porque tiveste que cortar, tiveste que deixar de lado para desenvolver depois, ou temas que se relacionam, mas só em parte, com o livro e que deixaram vontade de desenvolver mais. No fundo, o podcast foi uma fórmula que eu encontrei de dar uso a tudo aquilo que foi parte da minha investigação e que acabou por não chegar ao livro, de poder desenvolver mais temas relacionados com esta minha defesa apaixonada do mundo global. E é também uma boa forma de continuar a conversa com os leitores, que têm muitas vezes perguntas sobre algumas das questões que eu vou levantando no livro. Eu procurei escrever o livro em forma de diálogo, ele é um diálogo permanente com um crítico da globalização: eu vou procurando conversar com uma pessoa que seja crítica da globalização e vou procurando responder às perguntas que eu intuo que essa pessoa está a fazer. Mas houve várias perguntas que ficaram de fora e o podcast é uma boa forma de continuar a conversa. Felizmente, hoje, temos essa possibilidade: sem gastar um tostão, para além de gastarmos no equipamento informático e na Internet, podermos aceder a podcasts e de conversar com pessoas do mundo inteiro. Isto é uma das vantagens da globalização, a possibilidade de aceder a conteúdos destes.


PTP Há algum problema que não tenhas abordado neste teu primeiro livro que consideres igualmente importante considerar proximamente, seja em livro, seja em podcast?


AMN Há duas questões que me parecem muito importantes. Uma, que eu abordo lateralmente no livro, embora tenha um subcapítulo, tem a ver com as alterações climáticas e com o ambiente. Mas, o tema é tão denso, que teria de ser um livro: de que forma é que a economia de mercado e o capitalismo são melhores para o ambiente do que aquilo que as pessoas pensam. A outra questão que eu gostaria de desenvolver, mas que já seria fora da economia do livro, tem a ver com o papel das redes sociais, dos monopólios digitais, desta economia digital, na qualidade da nossa democracia: de que forma é que está a impactar na qualidade do debate e na expressão da vontade do povo, das pessoas. Isto é um tema mais político do que económico e, portanto, saiu fora do livro, embora eu trate do tema dos monopólios digitais no livro, mas trato-o do ponto de vista económico.


PTP Referes o ambientalismo no teu livro, numa passagem que achei particularmente interessante: “Há uma enorme procura de segurança, que aliás justifica o regresso à religião e ao nacionalismo, mas também a afirmação do ambientalismo, porque as sociedades precisam de um sentido de pertença”. Gostarias de desenvolver um pouco o que é que esteve na base desta afirmação?


AMN Bom, isso então seria um outro livro! Neste livro, procurei mostrar que a globalização é um instrumento de progresso e de criação de riqueza, e de que forma é que nós devemos utilizá-lo para continuar a crescer e continuar a gerar progresso para as nossas sociedades. Mas a globalização é também é um fenómeno de internacionalização da política, e essa internacionalização tem consequências políticas. Nós crescemos olhando para os nossos governos e depois, já de forma crítica, para as instituições europeias, como sendo aqueles que mandavam nisto tudo e a quem caberia responder aos nossos problemas, aprovando as políticas públicas que fossem mais adequadas ao momento. A globalização traz uma internacionalização tal dos problemas, que nós olhamos para os nossos governos como sendo instâncias demasiado pequenas ou incapazes de dar resposta a esses problemas, porque eles necessitam de uma escala muito maior. O caso das alterações climáticas é, provavelmente, o melhor exemplo: não há nenhuma política pública de alterações climáticas que possa ser aprovada nacionalmente que dê certo ou que dê resultado, porque é um fenómeno internacional, portanto implica uma grande concertação mundial. E isso é extensível à fiscalidade internacional, à concorrência internacional, aos monopólios e, portanto, há um sentimento de despertença que as pessoas sentem. E eese é um sentimento que é muito explorado pelos populistas nacionalistas, pelos populistas isolacionistas, os populistas que dizem: nós temos de fechar as nossas fronteiras, porque temos de recuperar o controlo sobre as políticas que nós queremos implementar. E este sentimento de despertença não pode ser ignorado. Aquilo que digo no livro é que há várias respostas sociais a esse sentimento: o nacionalismo é uma delas.

“As redes sociais converteram-senas novas referências éticas,são e las que decidem o que éque pode ser dito e o que é que não pode ser dito.”

Mas há também, ao mesmo tempo, neste fenómeno globalização, um fenómeno de laicização da sociedade. As sociedades foram-se tornando mais laicas, fruto da diversidade que foram encontrando nos seus territórios e que obrigou os estados a tornarem-se mais neutros, mais independentes das culturas e das religiões que existem dentro dos seus territórios. Essa laicização da sociedade, na qual as novas gerações crescem, como que as deixa sem referências espirituais e morais. E é nesse quadro que eu acho que o ambientalismo tem surgido como resposta, porque o ambientalismo como que proporciona uma nova ordem moral: nós temos uma casa comum, que temos de respeitar, é maior do que nós; que nos impõe regras naturais para a respeitar, um código ético, um código moral que nos transcende, que vai para além de nós, e que nós temos de deixar às novas gerações. E se pensarmos bem, esta dinâmica do ambientalismo é muito própria da espiritualidade de uma religião: o ambiente tem sido uma forma que as sociedades têm tido de encontrar essas referências morais e éticas. No fundo, é um regresso às religiões pagãs, que viviam muito desta dinâmica do culto da Terra e da natureza.


PTP No que respeita à democracia e às redes sociais, procurando levantar brevemente o véu sobre a questão: que perspectiva é que tu tens, sendo que abraçaste, desde o primeiro momento, as novas tecnologias para chegares às pessoas e partilhares a tua visão de mundo e ideias políticas?


AMN O que penso que está a passar-se, e sobre o qual eu não tenho ainda uma reflexão conclusiva, é que o espaço digital de algumas redes sociais converteu-se num novo espaço público. E isto cria um choque de legitimidades. Por um lado, são empresas privadas, portanto devem ser livres de gerir o seu negócio como entenderem, de acordo com as regras do negócio e com as regras que os países tiverem definido para o enquadramento da liberdade de empresa. Por outro lado, elas confundem-se com o espaço público: há um choque da legitimidade da liberdade de imprensa com o choque destas empresas terem funções públicas, que elas exercem, mesmo que de forma involuntária ou lateral. Vou dar um exemplo: uma campanha eleitoral demora 15 dias; se a rede social, o Twitter ou Facebook, optarem por excluir, por banir um candidato, seja pelo motivo que for, está a amputar essa candidatura de acesso ao espaço público, onde tudo se decide hoje. Dir-me-ão: não existe nenhuma regra que obrigue a que só se utilize aquela rede social. É verdade, mas, na prática, ela converte-se no espaço público. E isto traz um conjunto de problemas entre o choque na legitimidade da liberdade de empresa e da circunstância, ou da responsabilidade, delas estarem no espaço público. Isto é uma questão muito interessante de se debater. Quando o Twitter baniu Donald Trump, eu fiquei com sentimentos contraditórios. Por um lado, acho que uma empresa privada deve poder fazer o que entende, e eu acho que existem muitos motivos para não se gostar de Donald Trump. Por outro lado, entendi que esta era é uma decisão que bulia com o espaço público e com o acesso ao espaço público. E que fazia com que uma rede social modelasse o espaço público, porque tem lá outros ditadores a twittar e só escolheu este.


As redes sociais converteram-se nas novas referências éticas, são elas que decidem o que é que pode ser dito e o que é que não pode ser dito. São elas que decidem o que é que é linguagem ofensiva, são elas que decidem, pela sua acção e por pressão dos seus utilizadores, o que é que é aceitável e o que é que não é. Portanto, elas estão a exercer funções que vão para lá da sua condição de empresas privadas no mercado concorrencial. Eu acho isto muito interessante, porque isto tem consequências, como é evidente, na qualidade do debate e do espaço público. Isto já para não falar das outras questões relativas à polarização do discurso e etc., mas isso, então, é mesmo outro livro, aliás, são mais dois ou três! Mas, enfim, já deixei aqui algumas linhas de pensamento.

“Eu gosto desse mundo em que podemos ir à procura das melhores oportunidades, em que podemos ser livres de o tentar e de sociedades em que, desde que respeitemos as liberdades dos outros, possamos viver e construir o nosso projecto de vida e o nosso projecto de felicidade”

PTP Como olhas para a geração mais jovem? Antevês que venham a redescobrir e a valorizar mais os benefícios da globalização? Achas que a nossa geração foi privilegiada por experimentar este mundo num tempo o mais simpático?


AMN Eu acho que valorizamos pouco a circunstância de termos nascido e vivido em décadas de paz, de prosperidade, de tolerância, de reforço das liberdades políticas, de reforço das liberdades cívicas, de reforço da liberdade de cada um poder ser e viver como entender. Valorizamos pouco o acesso abundante que temos a bens, a serviços públicos, bens de saúde, a medicamentos, a cultura, a conhecimento. Tratamos tudo isso como uma espécie de dado adquirido, de facto consumado. E o receio que tenho é que as novas gerações perspectivem o seu futuro partindo do pressuposto que tudo isto do que estamos a falar já não volta atrás, e comecem a aderir a ideias que parecem muito atractivas, mas que podem colocar em causa e em risco tudo isto que temos, e que é fruto da globalização. É esse um pouco o propósito do livro. E vivemos, de facto, tempos em que somos convidados a indignar-nos diariamente, a sentirmo-nos injustiçados diariamente, a sentirmo-nos vítimas diariamente, a exigirmos a reparação imediata de uma injustiça de que somos vítimas, o que está a puxar as pessoas, e que está a pressioná-las, para que não olhem para todos os feitos que conseguimos e se concentrem num ressentimento que é, depois, gerador de conflitos e de erosão social, e que não são nada positivas para a qualidade da vida em comum e para a qualidade da democracia.


PTP Atendendo a esse risco, como é que te sentes? Ainda te consideras optimista quanto ao nosso futuro colectivo? Viveremos melhor no tempo em que formos avós?


AMN Sim, estou optimista. É verdade que estamos, hoje, mais sujeitos, ou mais disponíveis, a abraçar causas populistas, proto-autoritárias, com causas até liberticidas. Mas também é verdade que temos, hoje, instrumentos e mecanismos de reacção a essas causas assim que se torne evidente que o seu propósito não é tão positivo quanto pensávamos. Ou seja, vivemos, agora, num tempo de auge de alguns populismos, mas a verdade é que o mundo vai evoluindo e, portanto, estou certo que, a seguir a esse auge, virá a sua decadência.


Isto desde que, no espaço público e no espaço político, não deixem de se fazer ouvir vozes fortes, radicais até, na defesa dos valores da liberdade e da igualdade e dos valores da moderação na política. E é por isso que o livro também surge, para contribuir, para mostrar, que não temos de nos radicalizar, não temos de nos polarizar, não temos de abraçar essas causas políticas: é o momento em que os amantes da liberdade devem sair à rua para mostrar que ela pode estar em causa. Portanto, estou optimista no sentido em que há muito em causa por que lutar e estou certo de que haverá muita gente a querer fazê-lo.


PTP É impossível ler o teu livro e não pensar no teu histórico de intervenção pública e na tua acção governativa, particularmente enquanto Secretário de Estado do Turismo.


Foste responsável pela liberalização do sector turístico em Portugal, que esteve na base da revolução que antecedeu a crise pandémica. Face ao teu conhecimento e experiência, que futuro antecipas para esta indústria, que é uma das grandes vítimas da crise actual?


AMN O turismo é uma resposta cultural, vive das liberdades de circulação, vive do crescimento da classe média mundial, da afluência dessa classe média, vive deste tempo em que as nossas necessidades básicas estão satisfeitas e responde a esta ânsia permanente do ser humano de conhecer mais, de conhecer o outro. Eu diria que o turismo é uma actividade natural à natureza humana, passe o pleonasmo. Por isso, ele não está em causa enquanto actividade por causa desta pandemia: quando ela for controlada e quando ela terminar, o turismo regressará. Eu sou muito optimista relativamente a esse aspecto, não acho que a natureza humana se tenha alterado ou se vá alterar com esta pandemia e que vamos deixar de querer viajar. Quando o 11 de Setembro aconteceu, também se previa que as pessoas iam deixar de andar de avião e os anos turísticos sucederam-se, uns atrás dos outros, batendo recordes atrás de recordes.


Uma questão diferente é saber quando é que estarão reunidas as condições para que o turismo possa continuar a exercer sem crescimento, e para isso é preciso liberdades de circulação, que neste momento estão restringidas, com fronteiras fechadas, com restrições à entrada de pessoas, com lockdowns e com quarentenas. A confiança nos destinos também está comprometida, nós viajamos para destinos onde nos sentimos seguros ou onde sentimos que conseguimos lidar com a insegurança relativa que o destino tem e, neste momento, temos muita insegurança devido à questão pandémica.


Eu diria que enquanto não resolvermos a pandemia, enquanto não encontrarmos uma vacina ou uma cura, o turismo terá dificuldades em se reafirmar, porque lhe faltam estas duas componentes essenciais: as liberdades de circulação e a confiança. Isso pode demorar tempo e, portanto, o risco que corremos é que o sector privado do turismo vá na enxurrada e não se aguente até chegar ao momento de voltar a abrir as portas. As políticas públicas de apoio ao sector têm de ter em conta que tem de se apoiar o sector privado, mas tem de apoiar o sector que possa estar em condições de abrir as portas assim que o turismo puder regressar, sob pena de estarmos a gastar recursos para manter artificialmente um sector, ou algumas das empresas do sector que não vão conseguir atravessar este período.


Em suma, estou optimista relativamente ao turismo enquanto actividade económica, mas mais pessimista porque me parece que ainda vai passar algum tempo até que a confiança dos turistas atinja níveis que permitam ter os níveis de crescimento que fomos tendo nos anos antes da pandemia.

“Acho que valorizamos pouco a circunstância de termos nascido e vivido em décadas de paz, de prosperidade, de tolerância, de reforço das liberdades políticas, de reforço das liberdades cívicas, de reforço da liberdade de cada um poder ser e viver como entender.”

PTP E as cidades, a pandemia veio alterar a tua visão sobre as mesmas? Acreditas que continuarão a ser tão actrativas como antes, sendo que apontas esse como o factor essencial que tem estado na base da pressão do lado da procura?


AMN Nós vivemos numa economia de serviços e, ao contrário da economia do sector agrícola ou da economia do sector industrial, a economia de serviços concentra-se nas grandes cidades. É lá que estão os advogados, os contabilistas, os engenheiros, é lá que estão os publicitários, os designers, é lá que está a criatividade. E, por isso, existe uma enorme pressão do lado da procura pelas cidades: as pessoas querem viver onde tudo acontece. Essa pressão não vai desaparecer. Em cima dessa pressão, surge a pressão turística, por duas vias.


Uma é o turismo de lazer, porque as cidades são o pretexto perfeito para mini-férias, para o short break de dois ou três dias. São destinos ideais para isso, cidades vibrantes, onde tudo acontece, puxam por esse turismo, ele vai continuar a existir uma vez retomada a confiança. Mas há uma outra fonte de procura turística das cidades, que tem a ver com o turismo de negócios. Não só os congressos e os eventos, mas também as reuniões que se realizam porque as pessoas vão fazer negócio umas com as outras. Aí podemos ter uma mudança relativa, porque com o teletrabalho, com a utilização das novas tecnologias para reuniões, pode-se mitigar, de forma robusta, alguma da necessidade do turismo de negócios. Isto para além de que o turismo de congressos e de eventos vai demorar bastante mais tempo a retomar do que o turismo normal, porque implica grandes multidões: aí penso que a procura poderá diminuir durante algum tempo.


Mas as cidades continuarão a ser alvo de uma grande procura do ponto de vista habitacional. Este é um desafio que as cidades têm, é visível em muitas cidades europeias, cada uma delas com o seu regime de arrendamento, cada uma delas com seu regime de arrendamento para turistas, cada uma delas com a sua lei de rendas, o que significa que o problema é mais estrutural do que as circunstâncias das cidades: cidades com enquadramentos legislativos e regulatórios muito diferentes estão a viver os mesmos problemas. Por sua vez, os mesmos problemas têm a mesma dimensão, o mesmo choque de procura face à insuficiência da oferta. Berlim tem sido um caso muito falado nas más notícias precisamente por isso.


PTP Para terminar, não poderia deixar de perguntar, como é que olhas para os portugueses que emigraram, que estão espalhados por todo o mundo. São agentes que experimentaram os benefícios da globalização e poderão ser agentes promotores da tua própria visão de mundo?


AMN A emigração é propiciada pela globalização, globalização no sentido de abertura dos países a trabalhadores estrangeiros, a economias estrangeiras, a produtos estrangeiros, à concorrência estrangeira. E essa liberdade de circulação das pessoas, à procura de melhores condições de vida, é um bem das nossas sociedades. Claro que depois haverá histórias diferentes, cada um é dono do seu percurso, cada um é dono das suas opções e é responsável por elas, mas foi a abertura de oportunidades extraordinárias para muita gente. E eu gosto desse mundo em que podemos ir à procura das melhores oportunidades, em que podemos ser livres de o tentar e de sociedades em que, desde que respeitemos as liberdades dos outros, possamos viver e construir o nosso projecto de vida e o nosso projecto de felicidade. Nesse sentido, a emigração é um exemplo das vantagens da globalização.


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