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Uma no cravo, outra na ferradura (2)


No mês passado, o autor deste editorial pretendia ter abordado dois temas: o novo sistema de agendamento de actos consulares e o concurso anual de atribuição de apoio financeiro pela parte do Estado português ao movimento associativo da diáspora portuguesa. O primeiro tema acabou por consumir muito mais palavras que as antecipadas e nem permitiu tecer considerações adicionais que dele poderiam derivar e que tem sido objecto de intenso debate – refiro-me em particular à dificuldade de aceder ao atendimento telefónico junto dos postos consulares e à acessibilidade de todos os cidadãos ao novo sistema. Estes assuntos são novamente abordados neste jornal, quer na forma de notícia, especialmente na que respeita a mais uma intervenção oportuna e pertinente do GRI-DPA, quer na entrevista de fundo que assinala o primeiro ano de mandato da Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas, Berta Nunes. Felizmente, parece estar a haver tacto na gestão deste assunto.


A entrevista que acabo de mencionar traz também novidades no que respeita ao movimento associativo, tornando este editorial ainda mais oportuno e, provavelmente mais extenso do que antecipado. Aparentemente, está em preparação uma revisão do DL n.º 124/2017, que introduziu o concurso anual de atribuição de apoio financeiro ao movimento associativo da diáspora. Este é o regime em vigor e já foi sobejamente elogiado por mim, especialmente pela transparência acrescida que trouxe a um processo anteriormente opaco e propício à arbitrariedade. É positivo, que vencidos três anos, se revisite a legislação e, desejavelmente, se aprimore o regime. Muitos se queixam do processo como sendo excessivamente burocrático. Discordo, de experiência própria sinto-me à vontade para considerar o processo bastante acessível desse ponto de vista. Onde me parece haver mais margem para reavaliar o diploma é na questão da elegibilidade de despesas. Parece-me que o legislador não pesou devidamente a decisão de considerar inelegíveis, por exemplo, despesas correntes como seja o arrendamento de instalações próprias. Não seria razoável o Estado assumir a globalidade deste custo, mas a partir do momento em que estrutura os apoios em torno de projectos, ou considera que a utilização de instalações próprias, arrendadas ou propriedade da própria associação, pode ser imputada na proporção do seu uso temporal ao projecto ou está a contribuir para um dispêndio acrescido de dinheiro com o arrendamento de instalações terceiras. Outra oportunidade de melhoria prende-se com a promoção da profissionalização da gestão. Parece persistir a ingenuidade que o movimento associativo viverá do trabalho voluntário. Sendo o trabalho voluntário importante, não deverá ser exclusivo. A viabilidade futura passa por uma gestão profissional e por uma gestão de projecto competente, devendo ambas ser remuneradas e este investimento ser parcialmente elegível para o projecto. Caso contrário, poder-se-á estar a promover a criatividade através da prestação de serviços a terceiros… Uma questão adicional, da maior importância, prende-se em garantir o funcionamento independente dos júris, tal como o regime o propõe. O processo tem de dar provas que há portas de ferro entre o júri e o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Não é razoável que um mesmo projecto, submetido com a mesma proposta (salvo a actualização orçamental), seja pontuado com 80 pontos num ano e 50 no seguinte. Também deixa muito a desejar que haja projectos excluídos na avaliação provisória saída em Março, que por obra e graça do Senhor aparecem na lista final muito bem pontuados no quartil superior. Numa nota final a este propósito, por ora, seria também interessante, desta feita do ponto de vista do director de um órgão de comunicação social da diáspora, que fosse potenciada a cooperação das associações com estes órgãos. De tempos a tempos, e a pandemia não afastou o tema, questiona-se a sustentabilidade destes meios, que preocupa quando se atenta ao papel que assumem junto das comunidades. Uma majoração, por exemplo, da publicitação e cobertura de eventos por parte destes órgãos, seria uma prestação de serviços, não se referindo a qualquer subsídio, e promoveria uma proximidade acrescida entre dois pilares das comunidades portuguesas no estrangeiro.


O regime é globalmente bom e há margem para melhoria. Não quer dizer que a implementação não falhe, e este ano falhou – de forma grave, segundo dita a minha avaliação. O calendário não viveu bem com a crise de saúde pública que veio para ficar. A lista provisória da atribuição de apoios a projectos para 2020 saiu no exacto momento em que chegou o primeiro confinamento. Os dois meses seguintes não permitiram que se ganhasse clareza suficiente sobre a viabilidade dos mesmos nos períodos temporais que se propunham, com ou sem recalendarização, visto que prevaleceu, e prevalece!, a incerteza sobre como a situação evoluiria. A partir do momento em que saiu a lista final, os apoios deveriam ter sido concedidos, mesmo que condicionados à execução – o que está devidamente acondicionado pelo próprio regime – e na exacta medida da prática instituída nos anos anteriores. Tal não foi feito e não houve preocupação em que se estabelecesse uma comunicação franca com as associações. Venceram-se meses até à libertação de verbas, perdendo a oportunidade única que o pós primeiro confinamento ofereceu, Verão afora. Quando a comunicação falha, resta a especulação e, conhecendo o país, pairou a ideia de que o governo estaria preocupado com o impacto financeiro da crise económica derivada da pandemia, tentando cortar preventivamente onde poderia, especialmente quando as receitas dos emolumentos consulares caíam. Verdade ou não, a mera ideia não é simpática e deixa muito a desejar sobre a sempre propagada valorização do movimento associativo da diáspora. E, dê por onde, a austeridade aguarda novamente à esquina.


Esta teria sido também uma oportunidade única do governo português ter evidenciado respostas prontas e céleres, como se exige às administrações públicas modernas. A verba global para os apoios estava definida e aprovada. Era sabido que havia projectos que não iam ser executados e, alguns, abdicaram sequer de receber as verbas que lhes haviam sido destinadas. Nesta recta final do ano há um corrupio de movimentação para ter exigir certezas, num contexto de incerteza, a quem ainda procura executar projectos, sugerindo-se a reposição pronta de verbas que nem há dois meses foram libertadas. Teria sido mais feliz ter considerado as condições excepcionais que este ano ditou e ter-se lançado um mecanismo extraordinário de apoio à liquidez das associações, muitas delas a passar apertos, nomeadamente por não poderem captar receitas normalmente obtidas através da organização dos seus projectos, com base na verba não consumida. Não o foi feito e é pena. O dinheiro pode ser escasso, não chegar para tudo e não resolver todos os problemas. Mas estas eram verbas destinadas ao movimento associativo e, num momento de necessidade de várias associações, foi-lhes negado o acesso, independentemente de o mesmo poder ter requerido ajustes. Mas não era impossível. Às vezes, trata-se mesmo só de uma questão de vontade.


Tiago Pinto Pais


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