Em tempos de pandemia, o realizador brasileiro estreou “A Última Floresta” na secção Panorama Dokumente da Berlinale (1-5 de Março 2021). Um documentário poético, que passeia por entre a realidade e os sonhos e nos faz entrar pela floresta amazónica adentro. Através do olhar do povo Yanomami, o filme lembra-nos que é urgente discutir a sua importância vital e protegê-la. Fala-nos de sustentabilidade, de como temos tanto a aprender com as culturas indígenas e de como é possível “Viver e ser feliz com menos.” Nas palavras de Luiz Bolognesi, a longa-metragem procura deixar claro “Como os excessos que nós criamos estão nos sufocando. E, ao mesmo tempo, como pode ser belo e potente esse modo de vida focado no aqui e agora, com menos planejamento e menos ansiedade.”
Rita Guerreiro
A propósito da estreia de “A Última Floresta” na secção Panorama da Berlinale em Março passado, a Berlinda e o PT estiveram à conversa com o guionista, produtor e realizador Luiz Bolognesi. Não foi a primeira vez que esteve presente na Berlinale: em 2018, estreou “Ex-Pajé”, que ganhou o prémio “Glashütte Original - Dokumentarfilm Preis”. Este ano voltou a marcar presença com mais um trabalho sobre as culturas indígenas do Brasil, tema que lhe é muito caro. Como não hesita em contar à Berlinda/PT Post, aos 17 anos tomou contacto com elas pela primeira vez através do livro-tese ‘A sociedade contra o Estado’, de Pierre Clastres, e ficou fascinado. “É um livro sobre um grupo indígena da Amazónia que estabelece laços muito profundos sobre os modos de relacionamento e de como funciona a comunidade indígena. Foi um livro que despertou o meu interesse pelos povos nativos da América, e é uma reflexão sobre esses povos não terem Estado, não porque eles sejam primitivos, mas porque é uma decisão deles. Essa é a análise do Pierre que me chamou muito a atenção.”
Após frequentar a Universidade de São Paulo, deixou a vida académica para trás e . foi professor de alfabetização em português de crianças numa comunidade indígena no sul da Baía, os Pataxó. “Fiquei dois anos lá e o convívio já não era só intelectual, passou a ser um convívio afectivo muito forte.” Escreve muitos guiões para outros realizadores, mas os seus trabalhos de autor são, quase inevitavelmente, ligados às questões indígenas. “O meu interesse foi reunir a força do cinema, a sua potência, com os conhecimentos e os modos de vida dos povos nativos da América. De uma certa forma, o meu cinema acabou se tornando numa conexão entre nós, homens brancos, que estamos interessados em aprender, e os povos indígenas. É assim que eu o vejo, na posição de um aprendizado. E procurando fazer uma tradução possível, porque os não indígenas não compreendem muito bem estes povos e constroem um sistema cognitivo bastante preconceituoso, em que tudo é lido como pobreza, miséria ou preguiça.”
Pensamentos mágicos e a importância dos sonhos
Depois de tantos anos a conviver com grupos indígenas um pouco por todo o Brasil, Luiz sabe que inferioridade não é a palavra certa para descrever estas culturas. A sua vontade de conhecer, aliada a uma profunda admiração e respeito, nota-se bem em “A Última Floresta”, cujo guião escreveu em conjunto com o Xamã Davi. A colaboração surgiu após ter lido o seu livro ‘A queda do céu: Palavras de um Xamã Yanomami’ (2015), escrito em conjunto com o antropólogo Bruce Albert. O Xamã não é apenas o personagem principal da história, mas também seu co-autor. O objectivo era conseguir maior autenticidade, ser um veículo para expressar o modo de viver e pensar mágico da comunidade Yanomami.
“Eu admiro o modo de pensar mágico, mas não é o meu modo de pensamento, não fui educado dessa maneira. A única maneira era ter um roteirista comigo que fosse um Xamã, que tivesse esse ponto de vista. Esse foi o objectivo. E também porque ele já era uma pessoa dada a narrativas. Todos os Xamãs são, são contadores de histórias e são muito fortes nas narrativas.”, aponta o realizador.
De olhos postos na verde selva e nos seus fiéis guardiães, colocou-se, uma vez mais, na posição de quem ouve, observa e aprende. “O meu cinema se coloca nesse lugar da escuta, de construir com eles uma narrativa e tentar revelar um pouco da potência, da beleza, da sabedoria, da ciência e de uma série de competências muito fortes que essas civilizações todas têm.”
Os sonhos aparecem na longa-metragem com uma enorme força, misturando-se com a realidade. Esta escolha, propositada, dá-lhe um tom muito próprio e procura aproximar-se à realidade dos Yanomami. “Muitas das respostas do que acontece no dia a dia vêm dos sonhos, e os sonhos interagem com o dia a dia. Eles encontram muitas explicações nos sonhos, então o filme começou a tornar-se fantástico nesse sentido. É um documentário, mas estabelece um ponto de vista muito original: você vai do mundo real para o mundo dos sonhos sem muita explicação, porque é como é para eles. Esse foi o principal objectivo, tentar ir mais fundo e estabelecer um olhar não de fora para dentro, mas, o mais possível, de dentro para fora.”, refere.
No centro do mundo
A longa foi realizada no coração da floresta, num lugar de difícil acesso. “Não se chega nem de barco, nem de carro, é uma região de serra. Só se chega com um avião pequenino, aterrando numa pista muito pequena, clandestina...”, conta Luiz.
As rodagens, que contaram com uma equipa de seis pessoas, duraram cinco semanas. Apesar de ser considerado um lugar isolado, o realizador lembra uma das frases que Davi lhe dizia sempre durante as filmagens: “Eu não estou isolado. Estou no meio da minha floresta sagrada. Estou no centro do mundo.”
E aqui, precisamente do centro do mundo, nasce a narrativa. Aquele pedaço de vida, há tanto tempo ameaçado, está de novo em risco. Desde 2019, com a chegada do Governo Bolsonaro, o local deixou de ter a protecção devida contra os garimpeiros. “As Forças Armadas pararam de cumprir o seu papel de respeitar a Constituição e não fizeram mais nenhuma ação para fazer a desintrusão dos garimpeiros. O território Yanomami está no coração da floresta, ele não está nas bordas em contacto com os brancos. É lá no meio. Então é uma doença no coração. É muito grave, não é uma doença na unha ou no cabelo”, sublinha também. Enquanto isto, o Xamã, figura central da aldeia e do próprio filme, procura manter vivas as suas tradições e mostrar ao homem branco o valor dos ensinamentos da Natureza. Porque, afinal, o Xamã não é apenas um curandeiro. “As pessoas geralmente acham que o Xamã é um tipo de curandeiro. E ele realmente tem o poder da cura, ele tem a sabedoria, porque ele domina uma ciência. Ele fez a Sorbonne da mata”.
Davi é um exemplo para os demais e é um elemento agregador pela sua sabedoria. “Os Xamãs reúnem um saber filosófico, mitológico e científico. A ciência dos Xamãs é cheia de metáforas. As suas explicações são poéticas, simbólicas, metafóricas, mas reúnem muito conhecimento. Os Xamãs também têm poder político. São consultados para tudo, tanto para questões ligadas ao núcleo familiar - são quase terapeutas - como também participam de decisões que definem o destino do grupo como um todo. São o epicentro de uma cultura. Quando você mata o saber de um Xamã ou líquida a figura de um Xamã, você comete um Etnocidio. As pessoas não morrem, mas a cultura adoece e morre.”, conclui.
Aqui e agora
Um outro conceito que o documentário aborda é a capacidade que os diferentes grupos indígenas têm de viver o aqui e o agora, por oposição ao homem branco, que procura controlar tudo. “Eles têm, no dia a dia, esse modo de não planejar o futuro, de viver o aqui e agora, que a gente acha um absurdo; mas como é que não planeja?”
Esta ideia de viver o presente, frequentemente discutida desde que a pandemia de Covid surpreendeu o mundo e nos deixou numa enorme incerteza quanto ao que o amanhã poderá trazer, é um dos pilares das culturas indígenas. “Conversando com eles, eles não entendem essa nossa tentativa de administrar o futuro. Eles acham um absurdo, do tipo: Como é que você vai controlar o que vai acontecer amanhã? Amanhã a gente vai ver. Essa tentativa de não viver planificando faz com que você viva muito mais o presente. Eles vivem muito mais intensamente o aqui e agora. E com esse não foco em querer controlar o incontrolável, eles estão abertos ao vir a ser, e isso cria níveis de stress e ansiedade muito baixos. Nós somos absurdamente ansiosos e estressados perto deles.”
Não deixa escapar, portanto, a oportunidade de trabalhar a naturalidade dos actores indígenas nas suas obras. “Do ponto de vista artístico, para mim, é um caminho muito interessante como cineasta. Os actores brancos perdem 100 a 0 com os actores indígenas. Tenho trabalhado com óptimos actores não indígenas, mas os atores indígenas têm uma presença no momento em que eles estão filmando em que eles estão 100% ali, não estão com a cabeça noutro lugar. Vivem aquilo numa intensidade e numa entrega que tem uma verdade que a câmara gosta muito e com a qual o cinema se encanta. É o meu segundo filme em que faço cenas de ficção com actores indígenas, e isso é algo que me interessa muito, fazer cinema que traga essa potência de verdade.“
O princípio do fim
Num cenário idílico, verde, ensolarado, tropical, a longa-metragem aborda a questão da destruição da floresta como o princípio do fim da humanidade. “Eu acho que o homem branco está num momento muito frágil, olha a pandemia que a gente está atravessando. Nós é que criamos isso, né? Nós é que destruímos as florestas e criamos um desequilíbrio e desarmonia tão grandes que tiraram esses vírus, bactérias e fungos, que estão há milhares de anos vivendo nos seus habitats, e os expomos a situações desarmónicas que a gente construiu.”
Luiz é peremptório, e faz questão de sublinhar esta ideia condutora para demonstrar o que se passa no seu país e que irá afectar todo o mundo. “Por outro lado, estamos também destruindo os recursos hídricos do planeta e, em poucos anos, vamos ter falta de água em todos os continentes. Já falta água nas torneiras nas grandes cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Falta água nas plantações de soja no interior do Brasil, o regime de chuvas está muito alterado. E isso acontece por causa da devastação, da destruição dos biomas.”
“A Última Floresta” é também sobre sustentabilidade. O realizador discorre sobre o tema de forma acessível, sugerindo que aprofundar conhecimentos sobre as culturas indígenas só nos poderá trazer benefícios. “Com todo esse cenário, para mim parece muito claro que temos que aprender com essas civilizações pré-cabralinas, que eram muitas, falavam muitas línguas diferentes, e tinham um conhecimento muito grande sobre sustentabilidade. Esse termo, sustentabilidade, é um dos temas mais debatidos no planeta. Os economistas, matemáticos, filósofos, pensadores, estão dizendo que o mundo não é mais sustentável, que o mundo não consegue mais fornecer as demandas que a humanidade criou se continuar dessa maneira.”
De repente, os papéis invertem-se, e as comunidades nativas demonstram a sua superioridade. “Se tem povos que entendem de sustentabilidade, são os povos nativos da América, que estavam vivendo aqui há 12.000 anos antes dos europeus chegarem. E há 4.000 anos já dominavam a mandioca, o milho, as plantações de banana e já tinham roças e viviam em sociedades sedentárias e estruturadas. Passaram esses 4.000 anos num regime que a arqueologia e a antropologia demonstram que era de fartura. Não havia fome.” No filme, vemos o dia a dia da população Yanomami, os rituais espirituais, as idas à caça, as lendas e crenças, e ficamos com aquela sensação de que o tempo passa sem pressa e a harmonia perdura. Parte esquecida da História, faz-nos pensar como seria a sua vida antes da colonização. Será a sua forma de viver - que, apesar dos múltiplos atentados que já sofreu, perdura há milhares de anos - arcaica, atrasada?
“Estudos falam que havia aproximadamente 20 milhões de pessoas morando aqui, quase seis ou oito vezes mais gente que em Portugal [na altura]. Havia uma grande fartura de carboidratos, por causa das plantações, e proteína, que vinha da caça, da colecta e da pesca. Havia uma capacidade de viver num regime de fartura sem destruir os biomas.”, esclarece Luiz. Depois, faz o contraste com a agricultura dos nossos dias e arremata: “A gente [homem branco] entra com a monocultura: primeiro a cana de açúcar, depois algodão, hoje soja e gado, devastando os biomas e trazendo um desequilíbrio ambiental, social e económico.” É caso para pensar: talvez seja esta a definição de arcaico?
Depois da última floresta
“Na hora em que a gente deixar a última floresta acabar, a gente vai viver num mundo sem água. Vai ser uma guerra. Vamos ter o momento final dos homens se matando entre si por um punhado de água, um bem essencial que estava disponível e que os povos nativos sabiam cuidar muito bem.”, diz o realizador. E enfatiza ainda a importância de uma tomada de acção por parte dos governos de todo o mundo: “Eu acho que, nesse momento, para a gente ter futuro, seria muito importante que a opinião pública, os media e os governos fizessem pressão com o Governo Brasileiro para que cumpra a Constituição, proteja a floresta e retire os garimpeiros dos territórios Yanomami. Os Yanomami estão na luta, resistindo, fazendo a parte deles, e a gente precisa apoiar essa luta, participar disso.”
O filme é uma forma de luta, uma demonstração de apoio aos Yanomami e uma trémula esperança por um mundo melhor. “Se a gente fortalecer essa luta para a manutenção desses biomas, ainda temos uma certa perspectiva. Se a gente falhar nisso, teremos um futuro de pandemia em pandemia, falta de água, um cenário muito negativo…”, refere sem hesitar.
Acostumado ao contacto com a Natureza e à convivência directa com aqueles que a sabem ouvir e compreender, apela à re-descoberta do mundo. “Vamos abrir a nossa escuta e aprender sobre ecologia, sustentabilidade, solidariedade e fertilidade com esses povos que ainda têm muito conhecimento sobre economia sustentável, sobre mundo holístico. Acho que está na hora de a gente ser menos arrogante e se inspirar nessa própria pandemia, ver como esse vírus, um ser de uma única célula, derrotou toda a nossa ciência. Vamos ser um pouco mais humildes e aprender com quem sabe dessas coisas. Ouvir o que têm a dizer, conhecer mais com esses povos que mantêm essa conexão com a natureza e essa maneira de viver com menos.“ Recorda, por fim, mais um ensinamento de Davi: “Para vocês brancos a riqueza é ter muitas mercadorias. Para nós, é fertilidade. A riqueza é saber que a capivara está tendo filhotes, porque vamos precisar dessas capivaras até para matar e comer. Precisamos saber que o bando de onças está fértil e saber que tem peixe no rio.”
Com o seu “A Última Floresta”, Luiz Bolognesi, eterno admirador dos saberes da Natureza, leva-nos numa viagem que procura perceber o nosso lugar no mundo. Faz um trabalho incansável ao dar voz a estas comunidades, procurando mostrar a sua sabedoria milenar e engrandecê-la aos olhos do homem branco. ”O filme é uma ponte, uma conexão, uma possibilidade de abertura e de escuta com esse mundo.”, conclui. A mensagem é clara: para percebermos o que se passa com o nosso mundo doente, é urgente saber ouvi-lo.
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