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Um drinque ao fim da tarde


Miguel Szymanski

Comecei a semana a organizar uma saída com as minhas duas filhas adolescentes. A ideia era levá-las a um passeio a Lisboa, que de nossa casa avistamos, mas que, apesar de só a foz do Tejo e uma faixa de pinhal nos separarem, é uma realidade longe e distinta no dia-a-dia. Apetecia-me um banho de cultura e de cidade. Depois de meses de pandemia e de uma longa estada numa pequena vila na Alemanha, estava com vontade de lhes mostrar o meu quadro preferido, que é a mais valiosa pintura em Portugal e o maior tesouro da colecção do MNAA (Museu Nacional de Arte Antiga), o palácio monumental construído pelos Távoras na Rua das Janelas Verdes.


Fiz uma breve pesquisa online para saber o actual horário de abertura do museu. De imediato apareceram notícias a informar que várias salas de exposição estão fechadas por falta de vigilantes. A seguir lembrei-me do Mude (Museu do Design e da Moda). Roupas bonitas e costura são alguns dos interesses das minha filhas. A Sofia, de13 anos, está numa fase em que quer estudar moda. Isso ou astrofísica. A nova pesquisa teve um resultado ainda mais frustrante: o Mude, na Baixa de Lisboa, na rua Augusta, já próximo da Praça do Comércio, está fechado para obras durante mais dois anos. Foi fundado em 2009, fechou para obras em 2016 e desde então não voltou a abrir. Fechado há cinco anos, continuará assim por mais dois, pelo menos. Não faz mal, pensei. Deixo as meninas ir à praia, como habitualmente, e vou beber um drinque ao fim da tarde.


Há milhares de artistas plásticos, actores, músicos, encenadores, carregadores de piano, guionistas, escritores, realizadores e maquilhadores, de profissionais do mundo do espectáculo e das artes a viver na penúria em Portugal.


À pergunta sobre a miséria e a fome que se vive entre os trabalhadores e criadores culturais, a ministra da cultura respondeu um dia que só falava de arte. E acrescentou, para terminar a conversa, a frase que, à pequena escala deste pequeno governo, ficaria célebre: “Portanto... muito obrigada e vamos beber o drinque de fim de tarde.”


A ‘versão-cultural-do-se-não-têm-pão-porque-é-que-não-comem-bolos’ passou-se há quase um ano, por coincidência ou não, no Museu de Arte Antiga de Lisboa, cujos jardins com uma deslumbrante vista sobre o Tejo são o sítio ideal para se beber um gin tonic ou daiquiri ao fim da tarde, sem dúvida. Mas o ruído dos tabuleiros e dos copos não faz desaparecer os problemas da cultura nem tira a fome a ninguém.


A cultura estava mal e não se recomendava muito antes da pandemia. Teatros a fechar, hábitos de leitura a cair, etc., o programa completo numa sociedade onde a renovação da frota de carros na administração pública, a construção de centros comerciais e hotéis são as principais prioridades.


Os empregados da restauração e do turismo, os donos de cafés, de alojamentos locais e de pequenas lojas também estão a passar dificuldades extremas. Mas quanto a esses a pandemia é o responsável directo. Na cultura o mal vem de longe.


O boom turístico de 2013 a 2020 não fez nada pelo sector da cultura. Enquanto em cidades como

Amsterdão, Paris, Milão ou Barcelona os turistas faziam filas de centenas de metros para entrar nos principais museus, cheguei a ir a um Domingo de manhã ao Museu Nacional de Arte Antiga, entrei, sem ninguém à minha frente ou atrás de mim na bilheteira, e fiquei meia hora sozinho na sala onde está o tríptico de Bosch “As tentações de Santo Antão”. Uma dos mais importantes obras de arte da humanidade a sós comigo, numa sala poeirenta, enquanto os turistas nos cafés perto bebiam galões e comiam pastéis de nata ou curavam ressacas com canecas de cerveja.


Mas será de admirar que o país trate mal a cultura? Portugal é uma democracia: tanto trata mal as artes como as minorias. Tanto deixa arruinar palacetes como entrega espaços verdes ao abandono. Trata mal as paisagens e os campos. As praias e os pobres. Trata mal os velhos, o comércio local e os alunos, os doentes e os contribuintes.

Foto deTai’s Captures - Unsplash

São já quase 50 anos de democracia. No início, Portugal teve um primeiro-ministro que quis acabar com os ricos. Nessa altura, o chefe do governo sueco disse ao seu homólogo português que, na Suécia, ainda estavam a tentar a acabar com os pobres. Em Portugal a desigualdade entre os mais desfavorecidos e os mais ricos não parou de aumentar nas últimas quatro décadas. Hoje a cultura está entregue a empresas privadas que organizam exposições num registo ‘kitsch’ com efeitos especiais de luz e com música ambiente, ou ao ‘museu’ da EDP, vendida por tuta-e-meia à China, que deixa cá uma migalhas dos seus lucros na forma de uma risível fundação cultural.


O problema da cultura é a falta dela. Quando não há livros nem leitura, teatros nem óperas, quando não há concertos nos parques, nem música de câmara, quando não há crianças a tocar música em casa com os pais, a entrar em museus e teatros, há cidades construídas às três pancadas, há emaranhados de cabos eléctricos aéreos em postes de madeira nas ruas, há lixo na berma das estradas, carros estacionados nos passeios, gente a cuspir na rua, há centros comerciais abertos a vender sapatos e bugigangas até à meia noite. Possivelmente a ministra há um ano só quis fazer como os bêbedos nas tascas, os sem abrigo nas ruas e beber para esquecer.


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