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“Tenho noção que entro em lutas que não tenho como ganhar: sou um bocadinho romântico nesse aspecto”

Entrevista | Duarte Monteiro, jornalista desportivo e autor


Duarte Monteiro é jornalista desportivo e autor, até à data, de quatro romances. A conversa com este português, que passou metade dos seus 35 anos a viver entre a Suíça, Estados Unidos da América e Alemanha, e que alterna actualmente a sua vida entre o Porto e Berlim, foi extensa. Tão extensa que optamos por o dar a conhecer aos nossos leitores em dois momentos sob as suas duas facetas profissionais. Começamos, até por o calendário o sugerir, pelo jornalismo desportivo. No próximo mês dedicar-nos-emos a conhecer a sua veia de romancista.


TPP

PT Post Gostamos de encetar as nossas conversas convidando os nossos entrevistados a darem a conhecer um pouco da sua biografia e percurso profissional. Quererás contar brevemente o teu caminho? Sei que passaste os teus primeiros anos de vida em St. Gallen, na Suíça – como surgiu St. Gallen na tua vida?


Duarte Monteiro 35 já são alguns aninhos de vida e St. Gallen é muito simples de explicar: os meus pais eram emigrantes na Suíça, apesar de ter calhado eu nascer em Portugal –a minha mãe estava no país, mas regressou para lá. A Suíça foi o meu primeiro país, vivi lá até aos 13 anos, foi onde passei toda a minha infância e pré-adolescência e foi o país que me ensinou o alemão.


Ironicamente, apesar de considerar a Suíça e St. Gallen como a minha primeira casa, o facto de ser muito próxima da Alemanha, ali mesmo junto ao Bodensee, acabou por me dar uma ligação muito grande ao país vizinho. Se calhar, uma ligação maior até do que à própria Suíça, porque a minha educação foi feita em alemão, os canais de televisão na Suíça eram, basicamente, todos os canais que apanhamos da Alemanha – a ARD, ZDF, RTL, Pro 7… - e, como tal, grande parte da minha educação foi muito virada para a mentalidade, para a forma de estar e de ser alemã.

“Em Portugal o sangue ferve muito rápido e quando se fala de futebol, há momentos muito desagradáveis”

Os meus pais decidiram voltar para Portugal quando o meu pai criou uma empresa de comercialização de granito – na qual agora também estou a trabalhar em part-time –, e houve ali um período de dois, três anos, que passei em Marco de Canaveses, a terra dos meus pais, até ir estudar para a universidade no Porto. Foi aí que começou a minha ligação à cidade do Porto. Estudei lá três anos e o início do jornalismo deu-se também lá: comecei logo a trabalhar, estagiei na TVI e, depois, fui para o Porto Canal. A seguir ao Porto Canal fundei um site de desporto com mais dois amigos e, a meio do percurso, o portal Clix (SONAE) quis investir. Começou por investir no nosso projecto, até concluir que não fazia sentido a sobreposição do nosso site com a secção de desporto no Clix. Fiquei sozinho como responsável pelo desporto do Clix: literalmente sozinho, trabalhando 7 dias por semana, 24 horas por dia. Ao final dum ano concluí que não dava e fui para os Estados Unidos.


Em 2010 vivi em Nova Iorque pela primeira vez, mas na altura fui com a consciência de que só iria passar lá dois meses, por decisão pessoal. Nem fui para trabalhar, foi quando escrevi o meu primeiro livro, ‘Encontra-me em Nova Iorque’: já o tinha alinhavado e já tinha começado a escrever umas coisinhas, mas aqueles dois meses em Nova Iorque acabaram por dar um impulso para escrever: não há nenhuma cidade que me tenha inspirado e que me tenha dado um quadro cénico de criatividade como essa cidade. É a minha cidade de eleição e se eu pudesse ir amanhã para lá, com outras condições do que aquelas que tinha na altura, iria.


Regressei a Portugal, estive seis meses sem trabalhar e comecei, depois, a trabalhar com o site desportivo zerozero.pt, onde assinalei agora 10 anos.


Pelo meio, houve Nova Iorque, outra vez, em 2013. Aí sim, fui para lá com o intuito de viver e passar lá o máximo de tempo possível, fui até com visto de cinco anos e continuando com a ligação em part-time ao zerozero. Mas o meu visto não era visto de trabalho, o que me complicou muito a vida: até consegui uma proposta de trabalho, mas não pude assinar contrato. Foi aí que percebi que não ia ser tão fácil assim ficar, a não ser que começasse a trabalhar de forma ilegal. Era algo que não me interessava e tomei a decisão de ficar o máximo de tempo que conseguisse para desfrutar da cidade e ter a sensação de viver em Nova Iorque, acabando por ficar mais um ano. Nessa altura já tinha escrito o segundo livro, ‘À Luz de Paris’ e escrevi o terceiro, ‘Manhattan Boulevard’.


Voltei novamente a Portugal e, pouco depois, no início de 2015, mudei-me para Berlim motivado pela empresa da minha família: tive uma conversa com o meu pai, numa altura de plena crise do sector do granito, porque a China tinha entrado em força no mercado com preços muito baixos, e decidi dedicar-me à empresa, com algum espírito de aventura, visto que à altura não percebia nada de granitos – mas não há nada que não se aprenda.


PTP O que é que te motivou para o jornalismo desportivo? O desporto, a escrita ou ambos?


DM Muito honestamente, acho que tudo começou ainda na infância. Vou contar um episódio que entendo revelar a génese do que me levou a ser jornalista desportivo. Lembro-me de ser miúdo e de jogar futebol no corredor da nossa casa na Suíça: tinha a porta do meu quarto numa ponta e uma mesa na outra eram as duas balizas e eu jogava futebol com peluches. E enquanto jogava, narrava os jogos: já fazia os comentários, descrevia os lances e acho que isso era a minha verdadeira motivação, mais do que propriamente o jogo em si.


O meu pai também começou a levar-me ao estádio do St. Gallen, ou seja, foi-me incutida a paixão pelo futebol e pelo desporto logo muito cedo. E percebi desde muito cedo que gostava muito de comunicação, apesar de altura ser muito tímido, ao contrário do que sou hoje. À medida que cresci e me fui desenvolvendo, fui também percebendo que tinha uma grande paixão pela escrita. Eu gostava muito de escrever, mas fui aperfeiçoando; até mesmo já depois de estar na faculdade e de saber que queria ser jornalista é que eu me afeiçoei mais à escrita e comecei a escrever livros.


PTP Tendo nascido e crescido na Suíça, como é que ganhaste sensibilidade ao português? Ou seja, sempre cresceste com a língua? O uso exímio que fazes do português, para alguém que esteve fora do país, veio de casa, das leituras, ou está em ti?...


DM Está claramente em mim. E, a este respeito, há que ter consciência de uma coisa: eu tenho muito orgulho em ser emigrante, eu nunca vou dizer que fui emigrante – sou emigrante, porque eu tenho 35 anos e vivi metade da minha vida fora. Tenho mesmo muito orgulho e, se me dessem a escolher, amanhã, recomeçar tudo de novo, quereria que fosse tal e qual como foi, porque acho que me deu e que me formou como pessoa de uma forma bem diferente daquela que teria sido se eu tivesse ficado em Portugal. Acho que sou uma pessoa diferente.


PTP No que é isso se reflecte?


DM Reflecte-se sobretudo na capacidade de compreender e abarcar formas de estar diferentes. Eu costumo dizer que sou português, os meus pais são portugueses, nasci em Portugal, mas metade da minha personalidade é muito central europeia. Vivi 13 anos na Suíça, em anos que marcam muito em termos de personalidade. E os quatro 4 anos em Berlim, já na minha fase adulta, ajudaram-me a compreender coisas mais complexas da vida e foram muito importantes para mim.


A verdade é que cresci na Suíça, falava alemão suíço fora de casa, e os meus pais são pessoas que não tiveram a possibilidade de estudar e, estando fora do país, falavam o português que se fala entre emigrantes e que não é propriamente perfeito. Quando cheguei a Portugal e fui para o sétimo ano, tirei negativa a português. E é por isso que eu digo que estava em mim, porque os meus pais têm obviamente a formação que têm, eu nunca fui muito exposto a concertos, teatro ou eventos culturais, porque esses não eram os interesses deles, o que eu tenho de respeitar. Portanto, a única justificação que eu encontro para que, depois, entre o sétimo e o oitavo ano, e entre o oitavo e o nono ano, tenha desenvolvido a competência de português que me permitiu ganhar um concurso literário na escola e passar de negativa para a nota de cinco, é mesmo a de ter uma predisposição, sensibilidade e capacidade de escrita e de comunicação inatas, que, simplesmente, não estava desenvolvida e a ser explorada. Comecei a ler muito, comecei a escrever muito, comecei a ver filmes legendados e, tudo junto, contribuiu para passar de pior aluno de português para o melhor aluno da disciplina da escola.

Há excesso de futebol globalmente. E isso tem a ver, única e exclusivamente, com uma coisa: dinheiro.

PTP Falemos de desporto e, particularmente, de futebol. Como comparas a cultura desportiva em Portugal e na Alemanha?


DM Gostaria de começar precisamente por aí, até porque já pensei seriamente em desistir das minhas lutas em torno da cultura desportiva em Portugal, porque às vezes é frustrante. Tenho noção que, às vezes, entro em lutas, entre aspas, que não tenho como ganhar: sou um bocadinho romântico nesse aspecto. Contudo, ter vivido fora permitiu-me conhecer outras realidades e, no caso particular, uma realidade e uma cultura desportiva e futebolística, assim como uma outra forma de se estar no jornalismo, muito diferente da nossa. E digo sempre, para que não me interpretem mal: não estou a dizer que na Alemanha é perfeita, nem estou a dizer que em Portugal é imperfeita


PTP Nem que uma é melhor que a outra?


DM Aí já tenho mais dúvidas e não tenho problemas em dizê-lo, até porque conheço as duas realidades por dentro – cobri imensos jogos da Bundesliga, conheci imensos jornalistas alemães, conheço bem alguns órgãos de comunicação social – e há, de facto, uma forma de estar diferente, que pode ser cultural.


PTP E dirias que é transversal a todos meios alemães, por exemplo, mesmo ao próprio Bild?


DM Sim, diria que sim: até na forma de se ser sensacionalista no desporto, há diferenças. Por exemplo, em Portugal os clubes não se abrem para ninguém, especialmente desde que descobriram os canais de televisão e os jornais próprios: não há abertura para conceder uma entrevista com um jogador, pede-se ao longo de meses e a probabilidade de sucesso é pequena. Começa logo por aí. Na Alemanha há muito mais abertura, até para com o Bild: toda a gente sabe qual é a postura do Bild, toda a gente sabe que aquilo é um bocadinho mais colorido, para o bem e para o mal, mas o próprio Bild consegue chegar a clubes importantes como o Bayern de Munique ou Borussia Dortmund. Há, de certa forma, um limite no jornalismo desportivo que não é ultrapassado, mesmo sendo sensacionalista. Em Portugal, há claramente a ideia de que a imprensa é inimiga e, portanto, vamos andar sempre em guerra.


PTP E isso tem alguma fundamentação? São episódios do passado que marcaram a relação com a imprensa para sempre?


DM São episódios esporádicos que, obviamente, acontecem: há choques, mas é também para isso que a imprensa existe, para colocar um bocado o dedo na ferida às vezes. Mas em Portugal reage-se mal e com hostilidade, cortando-se o acesso a entrevistas. Infelizmente, ainda há meia dúzia de meses, tive um problema no Estádio do Dragão, porque fiz uma pergunta numa conferência de imprensa que não agradou ao Futebol Clube do Porto e, como tal, estou até hoje proibido de entrar no Estádio do Dragão, para além de ter sido ameaçado, durante semanas, nas redes sociais, com vindas a minha casa, com ameaças de me partirem a boca… Isto tudo para dizer que, mesmo com as imperfeições que o meio desportivo e jornalístico na Alemanha tenha, há uma cultura desportiva mais evoluída do que em Portugal. Em Portugal gosta-se dos clubes, portanto uns são do Benfica, outros do Porto outros do Sporting e só se vêem as coisas assim.


Na Alemanha há uma cultura desportiva mais saudável. Aliás, começa logo pelo interesse noutros desportos; em Portugal, por exemplo, ninguém quer saber de basquetebol, nem quer saber de hóquei – são acompanhados por meia dúzia de pessoas. Na Alemanha há uma cultura desportiva em as pessoas vão ao futebol, vão ao andebol, vão ao hóquei: gostam de desporto e não só de futebol.


Ademais, há todo um profissionalismo na Bundesliga, que não há na Liga portuguesa. Isso terá também a ver com a dimensão do país e com a sua capacidade económica, não tenho dúvidas. Mas há um outro cuidado na forma como se tratam as pessoas. Em Portugal, infelizmente, o sangue ferve muito rápido e, assim, quando se fala de futebol, há momentos muito desagradáveis. Insurgir-me contra isso tem sido a minha luta, porque eu sei que é possível fazer jornalismo desportivo num ambiente saudável. Repara: o campeonato português começou agora, há uma jornada, e já há comunicados entre clubes a criticarem-se uns os outros, já há críticas aos árbitros…. Estamos a criar outra vez este barril de pólvora que vai explodir, mais cedo ou mais tarde. E é isso que eu não gosto, porque na minha personalidade há essa cultura do centro da Europa: sou mais cauteloso, mais ponderado, penso mais – para o bem e para o mal.


PTP Então, em resumo, no que é que contrastas a cultura desportiva em Portugal e na Alemanha: por exemplo, na crítica negativa da arbitragem, na abertura aos jornalistas, na transparência?


DM Sobretudo nisso, acho que há uma linha mais respeitosa entre instituições e jornalistas na Alemanha do que em Portugal. Acho que na Alemanha há uma cultura e uma forma de estar que preza o respeito, independentemente das divergências que possam existir – e eu não estou a dizer que não existam atritos volta e meia; obviamente que existem, mas isso existe em todas as áreas. Mas dos quatro anos que eu passei da Alemanha, do contacto que tive com clubes e com jornalistas, há claramente a noção de que estão todos a fazer o seu trabalho, respeitam-se, mesmo quando há perguntas mais incómodas ou que o jornalista não esteja lá propriamente para elogiar.


Em Portugal, pelo contrário, criou-se um clima de guerrilha insuportável, em que os jornalistas são encarados como inimigos. E isso tem muito a ver com a guerra Benfica-Porto, não há como contornar: geraram este clima nos últimos 20/30 anos – ou estás connosco, ou estás contra nós. Este clima não é saudável e isso reflecte-se na forma de fazer jornalismo: vai-se às conferências de imprensa e as perguntas são ‘e então, o que é que acha do jogo?’ e é uma cassete, semana após semana. Não há abertura para ser diferente e há receio dos jornalistas em fazerem perguntas que possam levar a más interpretações, como aconteceu no meu caso no Dragão. E aquilo foi um sinal que o Futebol Clube do Porto quis dar na altura: eu fui insultado ainda na sala de imprensa, em frente a toda a gente, para deixarem um sinal a todos – atenção, que se fizerem perguntas incómodas é isto que acontece.


PTP O que falta no futebol português? Há excesso de futebol em Portugal?


DM Eu diria que, actualmente, há excesso de futebol globalmente. E isso tem a ver, única e exclusivamente, com uma coisa: dinheiro. Hoje em dia há demasiados jogos, demasiadas competições – até para os adeptos é demasiado, torna-se exaustivo. E, até agora, estive a elogiar a forma de ser e de estar dos alemães, mas há na Alemanha uma coisa que eu acho absolutamente aberrante: para se ver os jogos da Bundesliga, são precisos três serviços, enquanto em Portugal está concentrado basicamente na Sport TV, à exceção dos jogos do Benfica em casa que dão na Benfica TV. Tem tudo a ver com a remuneração de direitos televisivos.

O dinheiro manda completamente no futebol e há excesso de futebol no geral, não é só em Portugal. O que há em Portugal é excesso de protagonismo extra-jogo. Há excesso de egos, de medos e de complexos constantes, que acabam por tirar a coisa mais bonita que existe no futebol, que é o jogo.


PTP Europeu 2020: que balanço fazes deste Europeu, fez sentido este regresso às grandes competições? Fez sentido este formato? Fazem sentido estas competições?


DM Começo pelo fim: estas competições fazem sentido, sim. Campeonatos da Europa, campeonatos do Mundo, campeonatos nacionais, Liga dos Campeões, sim. O que já não faz sentido são as UEFA Nations League, Conference League… tudo o que se cria à volta para haver ainda mais jogos.


O campeonato da Europa faz todo o sentido. O que não faz sentido, na minha opinião, é ser jogado com tantas seleções como agora, basicamente vai quase toda a gente à fase final. Lá está, assim há mais jogos, mais direitos de televisão, há mais dinheiro. Mesmo assim, e como costumo dizer, os campeonatos de selecções são momentos agregadores da sociedade, porque mesmo pessoas que não gostam de futebol juntam-se para os public viewings, há todo aquele ambiente de festa que se cria, vê-se o jogo e vibra-se entre amigos. Os adeptos identificam-se, as pessoas reconhecem-se num campeonato da Europa e num campeonato do Mundo, são momentos em que as pessoas se juntam e celebram, muito mais do que quando se trata de clubes. Na questão dos clubes parte-se muito mais rapidamente para a rivalidade, para o conflito, para a violência – infelizmente, é isso que os clubes, sobretudo em Portugal, promovem.


Agora, se este Europeu 2020 fez sentido ou não… eu, muito sinceramente, já tenho medo e até dificuldade em falar sobre o que é que se deve fazer, ou não, em contexto de pandemia. E se há coisa de tenho medo é das posições extremadas que, infelizmente, se encontram cada vez mais da nossa sociedade. Acho, sim, que o Europeu se fez por questões financeiras e, portanto, a base do porquê está errada. Fora isso, creio que foi feito um trabalho sério e havia condições sanitárias na altura: recordo-me que fui cobrir um jogo de Portugal a Budapeste e o estádio estava cheio, com 60.000 pessoas, mas 70% dos húngaros já estava vacinado. E até hoje, já passado um mês, tempo suficiente para analisar as repercussões, não nos deparamos com notícias sobre grandes surtos por causa dos jogos do Europeu. Creio que foi também, de certa forma, um sinal de retoma, um regresso a uma quase normalidade para as pessoas.


Já disse não ter gostado do formato: demasiadas seleções muitos grupos, muitos jogos, mais uma vez. O formato pan-europeu adoptado nesta edição não se repetirá, o presidente da UEFA, Aleksander Severin, já o anunciou face à complexidade que requer.


Atente-se também que a Alemanha fez três jogos em casa, tal como a Itália. A Inglaterra fez praticamente todo o Europeu em casa. Estas situações deram azo a várias críticas. Conceptualmente é interessante alargar-se um campeonato europeu ao máximo de cidades e países europeus: faz algum sentido e é giro. Mas, na prática, torna-se uma prova injusta, porque as cidades anfitriãs acabam por ter vantagem, enquanto quando se trata de um país organizador, aquele país pode ter vantagem, sim, mas todos os outros competem em igualdade de condições.


PTP Este campeonato europeu foi bem jogado?


DM Sim, em termos futebolísticos não foi um mau campeonato da Europa. Não foi o melhor que já vi, confesso. Mas foi melhor, por exemplo, que o de 2016; e contra nós falamos, porque Portugal foi campeão da Europa, naquele que creio ter sido um dos campeonatos da Europa mais mal jogados em termos futebolísticos: não foi agradável de se ver e não foi só Portugal, não foi bem jogado por toda a gente. Este Europeu, sim, teve bom futebol. Houve bons jogos e muitos golos, o que é uma coisa que às vezes as pessoas têm receio que não aconteça, porque tem lugar em final de época, os jogadores estão cansados e os jogos tendem, às vezes, a ser um bocadinho mais mastigados, como se costuma dizer na gíria futebolística.


E, já agora, acho que acabou por ganhar a melhor selecção: a Itália foi desde o primeiro dia a selecção que jogou melhor e que estava ali para ganhar.


Este Europeu vai também ter sempre um episódio que, felizmente, correu bem, mas podia tê-lo ensombrado: o episódio do jogador dinamarquês Eriksen, logo no segundo dia, podia ter posto termo ao campeonato, porque se o desfecho tivesse sido o pior de todos e ele tivesse acabado por falecer, acho que não se teria jogado mais. No meio de todo aquele susto, acabou por correr bem e, mais uma vez, a positividade das reacções mostraram como estes torneios podem agregar sociedades. Aquilo que aconteceu com este jogador, se tivesse acontecido em contexto de clube, acabaria por levar sempre os adeptos a manifestar-se. Ter acontecido no contexto em que aconteceu, em pleno campeonato da Europa, em que estão ali 24 países, em que todo o mundo está com olhos postos naquilo, permitiu que se esquecesse um bocadinho as trivialidades do dia-a-dia do futebol, se é pénalti, se não é pénalti, se o meu clube é melhor que o teu… Os adeptos e o ser-se humano acabam por ser tão ou mais relevantes do que o jogo em contexto de campeonatos da Europa e do mundo, porque o espírito é diferente. E viu-se isso no caso do Eriksen, criou-se ali uma onda muito positiva.


PTP Estamos em início de época, que perspetivas tens para a liga portuguesa e para a Bundesliga neste ano?


DM Desportivamente, acho que podemos ter um excelente campeonato.


O Sporting, depois de muitos anos à procura de si mesmo, porque foi mesmo isso que aconteceu, encontrou uma simbiose entre estrutura directiva – Frederico Varandas é um presidente que se distingue dos outros, e eu não quero ir pelo lado da formação, porque posso estar a ser injusto; mas nota-se uma postura diferente, trouxe a postura que eu desejo e que ele acaba por personificar um pouco: é presidente de um grande clube português mas não entra muito em guerras, não alinha muito em polémicas e conseguiu criar um contraponto com o presidente anterior, Bruno Carvalho, que foi uma aberração, e mesmo com Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira – e a estrutura desportiva. Frederico Varandas encontrou em Ruben Amorim um treinador perfeito para o seu tipo de liderança e para essa forma de estar, porque o próprio Ruben Amorim é alguém que foge muito a polémicas e que parece estar sempre bem disposto, sempre com um sorriso – obviamente que as coisas correram bem, o Sporting foi campeão, vamos ver quando começarem a correr mal. Mas o facto é que o Sporting tem uma excelente equipa, e está a demonstrá-lo mais uma vez. Não vou dizer que seja o principal candidato ao título, mas é uma equipa com boas condições para o conquistar.


O Benfica reforçou-se muito bem, é preciso dizê-lo. O Benfica, no ano passado, fez uma época absolutamente desastrosa face ao que era expectável. Reforçou-se bem, mas ainda não garanto que o Benfica esteja muito bem, especialmente porque vai ter que ultrapassar o PSV agora no play-off da Liga dos Campeões. Só entrando nos grandes milhões da fase de grupos da Champions é que o Benfica poderá respirar de alívio, porque senão as finanças poderão começar a apertar e ver-se obrigado a começar a vender jogadores outra vez.


O Futebol Clube do Porto acordo continua a ser um clube à imagem do treinador, é uma equipa cheia de personalidade, que colmata algumas deficiências técnicas com aquela raça que Sérgio Conceição, para o bem e para o mal, incute na equipa. Será sempre candidata ao título, mesmo que futebolisticamente possa ser inferior às outras: tem um pulmão e um coração diferente dos outros. Eu sou nortenho e percebo muito bem a forma de ser das pessoas do Norte: a cultura nortenha é um bocadinho mais aguerrida, é um bocadinho mais de combate. Isto não é uma crítica ao restante do país: aliás, acho que Portugal, não sendo um país assim tão grande, é um país riquíssimo a todos os níveis.


Há, ainda, que considerar o Braga. Confesso não ser braguista, mas acho que faria tão bem ao futebol português voltar a ter um clube campeão nacional fora da esfera dos três grandes. Se o Braga conseguir, sobretudo, ter estabilidade no seu jogo, pode ser uma equipa a intrometer-se na luta pelo título e isso seria interessante.


PTP É algo que eu gosto na Alemanha, haver maior diversidade entre equipas fortes, apesar da prevalência do Bayern.


DM Eu não simpatizo, nem tenho nada contra o Bayern. Mas é isso, na Alemanha tens o Bayern, mas, depois, até tens muito mais.


Em relação à Bundesliga, acho que o Bayern vai ter um ano mais difícil do que os últimos, porque mudou de treinador, tem o Julian Nagelsmann que é muito novo. Mas o plantel do Bayern de Munique não é de longe o melhor plantel do mundo: é muito curto, tem poucas soluções. Tem onze bons jogadores, sem dúvida, mas ainda no arranque do campeonato o Benjamin Pavard não pôde jogar e o Bayern teve que recorrer a um jovem da formação, o Josip Stanišić, e a coisa já tremeu um bocadinho.


Este ano, acho que o Leipzig uma possibilidade muito forte de fazer finalmente frente ao Bayern, atendendo também à contratação de André Silva, que foi um dos melhores marcadores da Bundesliga no ano passado.


O Borussia Dortmund é sempre um candidato, terá que controlar die jugende Bildende, é uma equipa cheia de jovens, às vezes um bocadinho inconscientes: o Dortmund tem pagado essa factura, mas é uma equipa belíssima, cheia de bons jogadores.


Há ainda equipas de segunda linha, como por exemplo o Bayern Leverkusen, que é sempre uma equipa a ter em conta. Também trocou de treinador este ano.


Permite-me falar agora das duas equipas que me dizem mais na Bundesliga, União e Hertha Berlim. O União de Berlim está a ter uma caminhada de sonho: em Köpenick nunca terão pensado na subida à Primeira Liga, permanecerem após o primeiro ano e, no segundo, irem às competições europeias! Está a ser um conto de fadas para o União de Berlim, um clube com o qual confesso simpatizar muito, porque a sua história é única, tornando-o num clube que está de forma diferente no futebol: não olha somente para a questão financeira, para a questão do merchandising, do marketing, do fazer dinheiro… Ao contrário do Hertha de Berlim, que vive com o peso do big city club. Berlim é das pouquíssimas capitais, vou dizer do mundo, mas seguramente da Europa, que não têm clubes com grande expressão, nem sequer em termos nacionais. O Hertha vive muito com essa pressão de ser o clube da capital, de uma cidade internacional, que joga no majestoso Estádio Olímpico – apesar de não gostar – e o clube está um bocadinho tremido este ano apesar de, mais uma vez, ter havido muito dinheiro. Tem um bom plantel, mas tem sido um clube muito inconstante. Se atinar, o Hertha pode fazer um campeonato muito interessante.


Para terminar, partilho uma coisa que eu acho muito engraçada na Alemanha e que jamais, em momento algum, seria possível em Portugal: o facto de os jornalistas desportivos terem liberdade intelectual para dizerem coisas como o Bayern ser o grande favorito a ser campeão, mas que até gostariam que fosse outro clube a ganhar para diversificar o campeonato. E de toda a gente aceitar a opinião dos jornalistas como algo perfeitamente natural. Em Portugal jamais seria possível eu, Duarte Monteiro, dizer que até gostaria que fosse o Braga o campeão este ano: Benfica, Porto e Sporting boicotar-me-iam logo as entradas no estádio, não há essa liberdade.


"Desportivamente, acho que podemos ter um excelente campeonato” “O Sporting tem uma excelente equipa” “O Benfica reforçou-se muito bem” “O Futebol Clube do Porto é uma equipa cheia de personalidade, o que colmata algumas deficiências técnicas” “Se o Braga conseguir ter estabilidade no seu jogo, pode ser uma equipa a intrometer-se na luta pelo título e isso seria interessante.”

PTP Os dirigentes de vários clubes portugueses têm sido apanhados em casos que sugerem susceptibilidade à corrupção ou a negócios pouco ortodoxos. Durante muitos anos pensou-se que quem dirige os maiores clubes seria intocável. O que mudou? Crês que seja possível a mudança para o futuro?


DM Espero que sim. Usaste uma palavra que me dá arrepios, mas que correspondeu à verdade durante décadas: intocáveis. E, mais uma vez, não tenho problemas em dizê-lo: Futebol Clube do Porto e Benfica são, ou foram, duas instituições criminosas nos últimos 30 anos em Portugal. E não só na questão da corrupção. O Futebol Clube do Porto foi, aliás, julgado e condenado por corrupção. As pessoas, às vezes, esquecem-se disso: o Apito Dourado parece que já foi há muitos anos, mas o Porto foi condenado nos tribunais, perdeu seis pontos em dois campeonatos que tinham processos do Apito Dourado, porque não havia forma de escapar, tinha de haver castigo. Agora, houve vários pesos e várias medidas na questão do Apito Dourado: o Boavista foi relegado para a 2ª divisão, ao Porto tiraram seis pontos... A Pinto da Costa não aconteceu nada.


A seguir veio Luís Filipe Vieira, que criou um modelo de gestão semelhante. Quando digo instituições criminosas, não o digo só pela questão da corrupção desportiva e digo-o porque tenho algum fundamento para o dizer e, até, porque nem sequer é algo que os dois clubes escondam. Há muitos negócios ilícitos que gravitam em torno do Benfica e Futebol Clube do Porto. A questão das claques é um tema muito sensível, quer no Porto, quer no Benfica. Não nos podemos esquecer, e nós esquecemo-nos muitas vezes, e o público em geral esquece muitas vezes, que o motorista de Luís Filipe Vieira foi caçado com vários quilos de droga no carro oficial do Benfica, a sair do Estádio da Luz. Isto são coisas que não podem passar pelos pingos da chuva…! Fernando Madureira, líder dos Super Dragões, já foi, mais do que uma vez, indicado como vendendo bilhetes falsos, como estando inserido em negócios obscuros. Declara o rendimento mínimo e anda pelas ruas do Porto num Porsche, para além de todas as situações de violência que, infelizmente, as claques e, sobretudo, os Super Dragões acabam por estar constantemente envolvidas. Isto, para mim, são situações criminosas. Todos os outros processos de tráfico de influências, de abuso de poder são apenas parte de tudo aquilo que estes dois clubes acabam por ser – estes dois e outros em menor escala, também é preciso dizê-lo –. E, durante décadas, pareceram-nos intocáveis. Espero muito sinceramente, e obviamente que toda a gente é inocente até prova em contrário, que tudo o que está a acontecer com Luís Filipe Vieira seja um sinal de que há, pelo menos, a disposição na Justiça de se mudar um bocadinho o estado das coisas.


Eu temia, e temo ainda, que se isto acabe por não dar em mais nada – e nós podemos ir de Vieira para os Ricardo Salgados e Joes Berados –. Se tudo isto acabar por cair em saco roto, perde-se completamente o controlo da sociedade. E, atenção, hoje a sociedade portuguesa já não é uma sociedade limitada, sem acesso à informação e com pouca formação. Portanto se estes casos continuarem a acontecer e se se perceber que Ricardo Salgado anda passar férias em Itália, tranquilo da vida e alegando não poder ir às sessões de julgamento, mais tarde ou mais cedo, gera desconfianças sobre a democracia em Portugal e é preciso ter muito cuidado com isso. Nós temos, infelizmente, variadíssimos casos na Europa de que quando a democracia falha, as pessoas vão para o mais fácil e para o mais enganador – e nós não queremos isso para Portugal. André Ventura e o Chega perceberam muito bem a lacuna que se estava a criar na sociedade portuguesa e é um perigo muito grande abrirmos espaço para essa direita. A própria Alemanha viu-a ganhar um espacinho nos últimos anos....


É preciso ter muito cuidado, porque convém que a Justiça funcione em democracia, para que não se perca a fé nela. E o futebol, sobretudo num país como Portugal, transmite muito dessa mensagem à sociedade. Se pessoas como Luís Filipe Vieira, que acumulam processos, saírem ilesas, se tudo isto acabar por não dar em nada, perde-se a crença. Mas eu estou moderadamente confiante que este primeiro passo que foi dado pode ser um bom sinal para se começar a lutar. Creio que há, pelo menos, essa tentativa de se limpar alguma coisa que está mal no futebol português e na sociedade.


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