Miguel Szymanski
Não, por favor, não mais um texto de período de férias, aquela altura do ano em que rigorosamente nada acontece; a que os britânicos com a sua fleuma chamam ‘silly season’ (época parva), os alemães, a revelar uma certa fixação por orifícios, ‘Sommerloch’ (buraco de Verão) e que os portugueses, com um sentido mais dramático, místico e um fascínio por cortinas de fumo, enchem tradicionalmente com notícias sobre incêndios.
Mas, incêndios? Já demos para esse peditório. Agora há incêndios em todo o lado. Em Portugal, a fasquia ficou muito alta desde ‘Pedrógão Grande’, há já quatro anos. Morreram 66 pessoas, a maioria dentro dos seus carros, numa zona de eucaliptos plantados até à beira da estrada, entre Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra. No dia a seguir estive lá. Na estrada havia carros queimados a fumegar, veios de alumínio que derretera e escorrera dos motores e solidificara em manchas brilhantes no asfalto. Corpos carbonizados até à irreconhecibilidade. Não é para mim um tema desde então.
Covid? Estamos a atingir um grau de saturação. Com pouco mais de meia dúzia de mortos a cada 24 horas, o assunto ameaça ser integrado no dia-a-dia, como as doenças respiratórias ou os cancros do pulmão causados pela poluição do ar. O irresponsável que não se vacina ascenderá em breve ao mesmo estatuto que o emissor de partículas finas e de nuvens de diesel que mata os seus congéneres, lentamente, nos bairros residenciais das cidades quando liga de manhã o motor do seu carro e assim dá um pequeno contributo para os recordes de temperatura acima dos 40 graus, a caminho dos 50, um pouco por todo o planeta.
Futebol? A equipa portuguesa entregou a taça que foi para Roma. O jogo que abre noticiários e que fornece a parte do ‘circo’ na receita ‘pão e circo’ é uma admirável cortina de fumo. Mesmo se, além do presidente do Benfica, prendessem mais meia dúzia de dirigentes desportivos de outros clubes, as fraudes em grande escala são feitas noutros sectores, com negócios não de milhões, mas de milhares de milhões.
Economia? Em Portugal, sem turismo, é um ‘não tema’. O governo tentou tudo para salvar a época turística. Até sacrificou as mais elementares regras de saúde pública, deixando entrar turistas do Reino Unido quando já não podiam viajar para nenhum outro país.
Corrupção? O Benfica é um problema isolado. Tão isolado como cada um dos outros casos que volta e meia vêm a público, o esporádico BES/GES, o pequeno BPN, os CTT, a BRISA, o BANIF, a EPUL, a CML, a TAP, a CGD ou GALP, a EDP, a PT, o BPP, a cegueira do Banco de Portugal, a TECNOFORMA de Passos Coelho, as PPP, o BCP, a FPF, o caso FREEPORT, a APA, os Vistos Gold, a Bragaparques, o grupo Lena do amigo de Sócrates, os submarinos de Paulo Portas, a SLN, o SIRESP, a SCML, o Montepio, as ‘golas anti-fumo’, a MOTA-ENGIL, a ONGOING, e por aí fora. Cada um destes casos envolve em média dois a três ex-ministros. E só o BPN, um banco do qual a maioria não tinha ouvido falar, até dar alguns problemas, deixou aos contribuintes uma factura superior a seis mil milhões de euros. Não são seis milhões. São mil vezes seis milhões. Enfim, casos isolados que não interessam ao menino Jesus comentar numa crónica de Verão.
Segurança? “Portugal é um país seguro e em pandemia reforçou essa imagem de segurança” com os “mais baixos índices de criminalidade”, disse o ministro da administração interna na Assembleia da República. O ministro Cabrita percebeu que, se reduzirmos as liberdades em direcção a zero, podemos elevar os níveis de segurança para próximo de 100%. E sente algum orgulho nisso. Compreende-se, já que dificilmente poderia sentir orgulho pelas forças policiais que mataram à pancada um emigrante ucraniano no aeroporto ou pelo polícia que espancou cidadãos, que foi condenado em tribunal, mas poupado pelo ministro a um processo disciplinar, podendo por isso continuar agente da autoridade. Para não falar do carro do ministro que, a velocidade não revelada, atropelou e matou um trabalhador na estrada. Carro esse, que fora apreendido a um alegado traficante de droga, atribuído ao ministro, mas com a sogra do traficante a continuar a pagar as prestações. Qualquer ministro assim é o seguro de vida de um primeiro-ministro. É um pára-raios político, um esplêndido saco de pancada, uma manobra de diversão ambulante.
Ameaças à Europa e às democracias ocidentais? Enfim, a guerra entre a Ucrânia e a Rússia não conta, o autoritarismo na Hungria e Polónia não aquecem nem arrefecem, os presos políticos em Espanha foram parcialmente perdoados, o embaixador chinês em Lisboa já liga aos directores dos jornais, que Beijing controla através de bancos credores, para proibir reportagens sobre Tianamen sem causar indignação. A suspensão dos direitos constitucionais só preocupa alguns idealistas, a maioria em Portugal assume a saudade de um ‘líder forte’ que ponha ‘ordem na bandalhada’. Se for um militar, ‘à antiga’, melhor.
Política internacional? Afeganistão, Síria, Taliban, Boko Haram? Pelo amor da Santa. Não quando vamos a banhos. A última coisa que queremos na época balnear é um gin tonic sem rodela de limão ou corpos de emigrantes a dar à costa.
Além de não serem temas dignos de Julho, a maioria remete para o dilema da podridão: quem aponta e denuncia os podres, contribui para a erosão dos partidos ao centro. Quem não o faz, contribui para a podridão que é a causa da erosão do centro. A solução é fingir que falamos, sem realmente falar. Desconversar, portanto. Em Portugal somos mestres nessa arte. Resulta sempre. Em Julho, mas também na outra época, de Agosto a Junho.
Em que ficamos, quanto a temas? Ah, em Julho faço anos. Isso, sim, é um tema cá em casa. Nasci em 66 e faço 55 anos. É muito raro: uma dupla capicua. Só me acontece de onze em onze anos. Já sei o que vou fazer. Se a vida me dá limões, corto-os às rodelas, como fiz com esta crónica. E divirto-me, porque tenho idade para isso. Divirto-me e aproveito as rodelas para fazer margaritas e daiquiris. O que será mais adequado nestes tempos do que ‘fazer uma saúde’?
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