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Ser português


Gonçalo Galvão Gomes


Terminada a participação nos jogos olímpicos e finado o exercício, que se tornou quase tradição, dos portugueses se digladiarem pelo orgulho coletivo de participações desportivas individuais, é tempo de pensar em algumas das questões que apareceram com a participação de atletas que não nasceram em Portugal.


Antes de mais esclareço este ponto: sim, são prestações individuais, porque cada um daqueles atletas, apresentou-se nos jogos olímpicos pelo seu mérito, e deve muito pouco ao país que representa.


Portugal não tem cultura desportiva, nem é um país que apoie a sua prática. O desporto escolar era anedótico nos meus tempos de estudante (há 20 anos) e consistia basicamente em jogos de futebol, onde os atletas dotados com dois pés esquerdos como eu, tinham poucas hipóteses de sucesso. Curiosamente, só em adulto é que percebi que gostava de desporto e que havia vida para além dos pontapés na bola.


O problema não se esgota na ação governativa (ou falta dela). Quantos portugueses se deslocaram a um pavilhão ou recinto desportivo, para ver uma atividade que não seja futebol? Poucos, porque o seu interesse é pouco.


Por estas razões, considerar coletivas as vitórias dos atletas que treinaram diariamente durante anos, muitos, sem qualquer espécie de apoio, é no mínimo, uma fantasia do patriotismo inflamado dos tempos. As medalhas são deles, das suas equipas e das suas famílias.


Mas o tema que quis aqui trazer e que me tem intrigado nas últimas semanas, são as questões à volta da medalha do Pedro Pichardo, o atleta português, nascido em Cuba, que ganhou o ouro na prova masculina de triplo salto.


Mercenário, vendido, estrangeiro, foram alguns dos nomes com os quais Pedro Pichardo foi apelidado, e até um ex-eurodeputado comunista, disse que a sua medalha não era “100% portuguesa”.


Sendo Pedro Pichardo um cidadão 100% português do ponto de vista legal, deduzo que a questão sobre a sua legitimidade enquanto cidadão, seja filosófica ou moral, e não tanto sobre a natureza do seu passaporte.


A interrogação que inevitavelmente se coloca é: o que é ser português?


É ter nascido em território português? Então, quem defende que o Pedro Pichardo não é português, por essa razão, tem que defender necessariamente que os filhos de emigrantes portugueses que nasceram no estrangeiro, também não são portugueses.


É falar o idioma e conhecer a cultura? Por um lado, nada nos garante que não seja esse o caso, por outro, quantos portugueses que saíram do país nos primeiros anos de vida e filhos de emigrantes, não deixaram a língua portuguesa para trás? Eu poderia citar vários exemplos.


Foto: Aлександр Bелигура - Pexels

É aquela conversa do ius sanguinis, que serve de capote para a teoria da identidade racial?


Há uns anos a Sic Radical tinha um programado de humor chamado “black skin” (ainda andam episódios pelo youtube). O black skin era protagonizado por um ator negro, vestido de forma a parecer um skinhead e que tinha um cão chamado Salazar. Em cada episódio, o black skin começava conversas com pessoas que andavam na rua (transeuntes não atores), na maioria negros, e mandava-os para a terra deles, de forma bastante agressiva e racista. Cada vez que ouço um português falar de “raça” ou “sangue”, lembro-me sempre do black skin.


No teste de ADN que fiz há uns meses, os resultados mostraram que tenho 10% de ADN finlandês, 5% ADN judeu, 5% ADN africano e mais umas coisas espalhadas pelo globo. Não me admirarei, portanto, se o Pedro Pichardo tiver mais ADN ibérico do que eu. Talvez o Miguel Viegas, o candidato pela CDU à Câmara de Aveiro e ex-eurodeputado, que diz que a medalha do Pedro Pichardo “não é seguramente 100% portuguesa”, me queira desconsiderar também. Em abono da verdade, quando vejo um cargo de representatividade política, nas mãos de um comunista, a minha portugalidade falha-me um pouco.


O Pedro Pichardo fugiu da ditadura cubana e de um regime que condena o seu povo à miséria e escolheu Portugal para viver. É um privilégio ter o Pedro no nosso país, como é ter tantas outras pessoas que elegeram Portugal como o seu refúgio. Esses portugueses enchem-me de orgulho, os que os discriminam por isso, não.


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