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Sem pachorra


Rita Sousa Uva

Andam por aí no ar umas partículas de falta de pachorra que não vos digo nem vos conto. Estas partículas formam uma neblina de energia fatigada, que enevoa a vista, enrola o pensamento e turva as ruas. Parecem teias de aranha que não saem nem com várias lavadelas de água e sabão, estão sempre lá e até se reproduzem mais na humidade. Chamam-lhe pomposamente a fadiga do Covid e é o último grito da moda 2020/2021.

Começa por se manifestar no humor colectivo, que como se sabe, reflete a soma do humor individual, mas sem qualquer rigor científico. Daí termos esta mescla de humores, que oscila entre o suspiro-que-rebola-os-olhos-encolhendo-os-ombros, a agressividade tempestuosa e um misto das duas abordagens, tornando a vida cívica imprevisível e vida privada repleta de armadilhas, umas inocentes e de boa-fé, outras mais nocivas, mas que exigem de todos uma capacidade de adaptação a níveis nunca antes experimentados em tempo de paz.


Aproveitemos a boleia. Naveguemos por entre os dias tentando não levantar muitas ondas nem ser engolidos por nenhuma vaga, seja ela de desemprego, doença, desânimo ou de agressividade. É um exercício constante de alerta que nos obriga a ser criativos de minuto a minuto, o que pode ser um tremendo desafio para uma sociedade assente em planos, estabilidade e ordem e que tem dificuldade em gerir o inesperado. É que faltam manuais para o imprevisível.


Depois dos primeiros meses de choque e incredulidade, o leque de emoções passou a incluir também estados de negação, que se identificam por frases do género “este vírus é muito esquisito”, “não acredito em nada disto e os chineses estão-se a rir” ou “recuso-me a usar máscara, esta porcaria não serve para nada”, frases estas que podem naturalmente ser ditas em várias línguas. Há outras variações anímicas, igualmente divertidas, principalmente se não formos alvo das ditas. Há os praticantes da cautela q.b., que não acreditam em bruxas mas que las hay, hay e que se fecham em casa, robustecidos por litros de desinfectante, máscaras várias, latas de feijão, grão, arroz, massa, sopas de pacote e do que for que lhes apazigue o pânico e seguem as recomendações literalmente e à risca. São o sonho de qualquer político ambicioso que aspire a ter controlo total sobre os concidadãos e saiba manipular os maiores receios e defeitos de cada povo. Não têm faltado nem candidatos em exercício nem aspirantes.


Também se observam momentos tempestuosos de agressividade, que se desencadeiam por questões importantes como por exemplo, outras pessoas na rua - salvo o próprio, naturalmente. O conceito abrangente de “outras pessoas na rua” é suficiente para fazer alguns destes seres perderem a cabeça. Falo por exemplo da malta ciclista que anda a 70Km a hora na ciclovia, guinando para a direita e esquerda para não esbarrar com ninguém e depois estatela-se no chão ao primeiro poste de semáforo que não desvia caminho. Mas há mais patuscos. Há os que se enervam com filas de mais de duas pessoas, ficam impacientes e tentam furar a fila dizendo que só precisam de fazer uma pergunta/ir à casa de banho/estão com pressa/não podem esperar que têm o carro em segunda fila e sem cerimónia nos empurram para a frente ou dão-nos cotoveladas rudes para conseguirem chegar mais depressa à bancada dos legumes ou da fruta e assim pouparem uns minutos do seu precioso tempo, que as pessoas são muito lentas e isto não se aguenta. São os pequenos Hulks e tomaram conta do ritmo citadino, caracterizam-se pelo tom esverdeado da pele e expelem sons parecidos com Scheisse!, Arschloch!, Doof!, Idiot!, Oh Mann! e outra vez, Scheisse!. Quando mais calmos, exclamam Wansinn!! Ou numa variante mais pacificada Wat?!? Ou Hãaa?!! enquanto nos empurram de punho fechado para o lado porque precisam de ir. Mas ir para onde, Ó Wilhem, se está tudo fechado???


Respiremos fundo, amigos. Isto vai passar, pá. Tenhamos paciência mais um pouco entretanto, reinventemo-nos, gozemos a descoberta de ficar quietos em casa. Não nos enervemos tanto, que nos dá um tranglomango e depois, quem conta as histórias de heroísmo às gerações vindouras? (escusado será dizer, essas tais gerações não vão saber nada do que é sofrer, que cada geração sofre sempre mais do que a seguinte, é um efeito colateral estranhíssimo da estatística ocidental).


Ufa! Este ano é precisa uma pachorra que ninguém sabia que tinha. Valha-nos isso.


BOAS FESTAS E FELIZ ANO NOVO!


P.S.: Em casa ou na rua, com roupa térmica e máscara, nada de abraços nem beijos repenicados e não tussam para cima dos outros. Quem estiver mais desesperado, entre em contacto com o fadigacovid@gmail.com.

Atenção que este correio electrónico não responde nem dá soluções - a não ser que esteja para aí virado, para estar de acordo com os costumes modernos. É mesmo só para receber queixumes e estados de alma - uma espécie de Muro de Desabafos para a Diáspora, em jeito de prenda natalícia virtual…


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