O PT Post conversou com a Dra. Sara Barros, psicóloga clínica com especialidade avançada de psicoterapia, para recolher e partilhar as suas opiniões sobre este tema relevante da actualidade
O Impacto do Confinamento na Saúde Mental
As pessoas estão muito saturadas, fatigadas. O impacto, em geral, é proporcional à estrutura da personalidade da pessoa e da eventual patologia pré-existente.
Ficar em casa aumenta o mau estar psicológico em dois tipos de pessoas: Para os que lidam com a ansiedade fazendo coisas e para as “pessoas de pessoas”, aquelas que precisam muito de contacto com os amigos e família, e que gostam muito de socializar.
As primeiras foram obrigadas a parar e quando pararam entraram em contacto com o seu mundo interno e angústias. Durante, e logo após o primeiro confinamento, houve muitas pessoas que procuraram acompanhamento psicológico por isso mesmo: o terem ficado parados, isolados e em contacto com eles mesmos, fez olhá-los para coisas que não queriam olhar há muito tempo: para dificuldades de relação, ou sentimentos de vazio, ou outras, o que lhes despoletou ansiedade.
O facto de, num momento para o outro, ficarem sem as estratégias (fazer desporto, realizarem muitas atividades, socializarem constantemente) que utilizavam para lidar com a suas angústias, veio gerar um grande sofrimento.
As pessoas que para o seu bem-estar necessitam muito de contacto com outras pessoas estão bastante frustradas, zangadas. Penso que serão algumas destas pessoas que poderão “furar” o confinamento para aliviar a sua necessidade de relação, principalmente as que vivem sozinhas.
O desafio adicional de residir no estrangeiro
Para quem resida no estrangeiro pode ser ainda mais difícil. As saudades são muitas, o medo que aconteça alguma coisa ao outro e estar longe... vai-se colmatando com as videochamadas e afins, mas há uma impotência muito grande. O não saberem quando vai acabar e quando poderão voltar a viajar e encontrarem-se.
A ansiedade é maior, há tristeza, pouca esperança e poderá mesmo haver depressão.
Diferenças comportamentais entre o primeiro e o segundo confinamento
Mais uma vez não foi igual para todos. Para uns foi insuportável o primeiro e toleram melhor o segundo, para outros no primeiro adaptaram-se e o segundo está a ser insuportável.
Mas em geral as pessoas já estão saturadas, gostariam de ter a sua vida de volta.
As pessoas que em geral toleram melhor são as que conseguiram organizar a sua vida pessoal e o trabalho. Algumas até gostaram das mudanças que o confinamento e trabalho a partir de casa lhes proporcionou, (já não perdem tempo nas deslocações, por exemplo). O que não gostam é desta falta de liberdade, de não poder ir a casa dos amigos, não poderem estar uns com os outros, de não poderem ir dançar. Os portugueses adoram ir para a rua, sair, ir para as esplanadas. Por isso, estão mesmo muito aborrecidos com esta situação.
Conselhos para lidar com o confinamento
Tentar manter a normalidade possível. Também ajuda pensar que isto é temporário, que não vai ser sempre assim.
Quando falo em tentar manter a normalidade possível falo de manter as rotinas: mesmo que não tenha de sair à rua, é importante que se levante, que cuide de si, que tome banho, se vista, mantenha os horários e as refeições.
Para quem esteja a trabalhar: procure, se possível, separar o espaço físico de trabalho do de lazer, tente manter um horário de trabalho e de horas de deitar. Respeitar o ciclo circadiano é importante para a saúde física e mental.
Cada um tem de encontrar qual o seu recurso, o que é melhor para si porque não há uma receita universal. Sabemos que a rotina ajuda a manter-nos “no eixo “porque muitas vezes quando não se tem obrigações exteriores desorganizamo-nos: começamos a comer fora de horas, a trocar os sonos...
Repercussões a médio e longo prazo
Para algumas pessoas é bastante traumático ficar isolado. Não só pelo sentimento de solidão, mas também pelo medo de perder a capacidade de se relacionarem, de ficarem sem pessoas.
A nossa capacidade social é como um “músculo”, se não o exercemos perde tónus. Este é um receio que, sobretudo, algumas pessoas que já tinham dificuldades relacionais, têm verbalizado.
Também para quem perdeu pessoas tem sido muito duro. Muitos não puderam acompanhar quem lhes era querido, porque não é possível fazer-se visitas nos hospitais, ou porque não pode ir ao funeral, o que dificulta muito o processo de luto.
No luto são muito importantes alguns rituais como ver o morto, fazer a despedida com velório e funeral…. Pode ficar uma culpabilidade que se pode tornar traumática por não se ter podido acompanhar quem estava doente. Fica o sentimento que se abandona alguém no hospital.
Também para quem ficou realmente doente, sozinho, o hospital é uma coisa terrível. Vão ficar memórias de grande sofrimento e medo.
Não esquecendo os profissionais de saúde que estão completamente exaustos física e emocionalmente. Muitos deles, por exemplo, fisioterapeutas, estão a fazer também o acompanhamento psicológico dos doentes, porque as pessoas estão sozinhas, com medo de morrer, com medo de não se poderem despedir da família. Isto é muito duro para os próprios profissionais de saúde que não são psicólogos e que estão a tratar as pessoas que estão aterrorizadas com medo de morrer e sozinhas. Claro que isto vai ter impacto: para quem sobreviver, algumas destas situações vão ser situações traumáticas.
O impacto económico da crise na saúde mental das pessoas
As pessoas já estão preocupadas. Algumas já perderam o emprego. Algumas não conseguem arranjar emprego. As pessoas que trabalhavam na restauração, no turismo, nas lojas, à comissão, estão sem trabalho. Estão preocupadíssimas com o que vem a seguir e estão ansiosas. Começam a aparecer os sintomas como a insónia, sentimentos de impotência, medo do futuro o que poderá levar ao aumento da depressão na população...
A privação de socialização na adolescência
Alguns adolescentes e jovens adultos estão muitos zangados, estão zangadíssimos, porque acham que estão a perder os melhores anos da sua vida e algumas das atividades que sonharam fazer nestas idades. Por exemplo aos 17, 18 anos, altura em que normalmente há a passagem do 12º ano para a faculdade, e que muitos deles planearam e que estão impedidos de o fazer como o baile de finalistas, a viagem de finalistas, ir a festas, sair à noite com os amigos, etc.
A adolescência já por si é uma fase mais complicada: fase de consolidação da identidade, de separação e individuação em que o grupo e os amigos tem um papel primordial.
Os adolescentes desta “era mais digital” já tinham alguma dificuldade em comunicar entre eles, porque, hoje em dia, a comunicação é muito no WhatsApp e outras aplicações, o que pode tornar as relações um pouco mais superficiais.
O facto de estarem privados de irem à escola e de outras atividades onde se encontravam penso que criará algumas dificuldades, principalmente na possibilidade de fazerem novos conhecimentos e relacionamentos, isto será ainda mais grave para os que têm mais dificuldades em se relacionar, vão ficar mais isolados.
Os outros que têm a habilidade para utilizar as redes sociais, têm muitas vezes mais facilidade de comunicar e até de conhecerem novas pessoas o que pode levar a “furos” no confinamento para poderem ter encontros. Muitas vezes não se percecionam em risco...
Também há adolescentes que estão muito ligados há família, nestes há muito medo de serem eles próprios os veículos de transmissão, de puderem trazer o vírus para o avô, a avó… E esses têm muitos cuidados. Mas, depois, ficam revoltadíssimos, acham uma injustiça, estão frustradíssimos e cansados.
Em geral, prevalece um sentimento de injustiça, do mundo contra eles: porque é que isto me aconteceu na minha idade, há um sentimento de perda de tempo…. Estão mais frustrados em geral, cansados – quando é que isto vai acabar? –, mas não estão zangados com o pai ou com a mãe. Essa zanga pode vir de terem que cumprir as obrigações ou regras em casa ou com a escola, como é habitual nesta fase do desenvolvimento.
Alguns conflitos ficam muito exacerbados em casa, porque os adolescentes isolam-se. Em geral, os adolescentes já estão muito sozinhos – no quarto deles, ao computador, nos telemóveis –, mas ainda ficam um bocadinho mais nesta situação. Alguns deles ficam muito agarrados aos jogos, não há nada para fazer, e os jogos são uma forma de socializar. Alguns pais estão muito preocupados com isso. Mas há coisas que são desta era, acrescidas e complicadas pelo facto de estarem fechados.
Na adolescência vive-se um segundo processo de separação- individuação (o primeiro é quando a criança começa a explorar o mundo e ensaia pequenas separações da mãe, por volta dos 18 meses). Nesta fase é importante poderem ir experimentado mais as suas competências – andar no metro, ir ter com os amigos, negociar com os pais a saída à noite –, com a pandemia e a impossibilidade de saírem, tudo isto vai ficar atrasado, estão mais limitados, não podem socializar tanto uns com os outros.
Comportamentos de risco: o vício e a violência doméstica
O tédio não é bom para a saúde mental, o não ter objetivos ou projetos é que se traduz no não haver nada para fazer e isto por sua vez vai gerar aborrecimento. Não é preciso serem grandes projetos, podem ser coisas pequenas que nos vão preenchendo e que nos fazem estar ligados.
Há estruturas de personalidade com maiores vulnerabilidades que são mais propensas às adições. Pessoas com maior sentimento de vazio, com pouca capacidade de fazerem “boa companhia a si mesmos” e com maior dependência no outro ou no exterior terão maior probabilidade de ganhar “vícios”.
Algumas pessoas referiram aumento do consumo de álcool e doces durante o confinamento. São duas substâncias que dão conforto rápido e que podem aliviar a tal ansiedade que já falei, ou algum preenchimento do sentimento de vazio.
A Netflix também pode ser considerada “um vício”, ver tantos episódios seguidos que perdemos um dia ... Mas atenção para se considerar mesmo adição as pessoas precisam de ter síndrome de privação e abstinência, ficarem irritadas e ansiosas se não tiverem o objeto do vício.
O confinamento tem levado a que casais entrem em conflito, porque de repente são confrontados com problemas com que não tinham que lidar anteriormente. Imagine-se um casal com um filho e um bom nível de vida, que tinha empregada todos os dias. De repente, ficam os dois em casa, sem empregada, a ter de gerir um miúdo de três anos e a terem que trabalhar de casa. A vida era fácil antes, não tinham de se confrontar com as birras do miúdo todo o dia, não tinham de fazer almoço e jantar, ir às compras, limpar… só dificuldades. Se as pessoas não tiverem maturidade, tiverem pouca resistência à frustração, com o grau de conflitualidade aumentado pode gerar agressividade e num caso muito extremado violência.
Os casais discutem e isso não quer dizer que haja violência doméstica. Esta existe quando o desrespeito pelo outro se instala. A violência doméstica inclui maus tratos físicos e verbais e observa-se quando na relação o importante é o poder e não o amor e quando se confunde posse com amor. Penso que as situações de violência doméstica que possam ter aparecido, e acredito que na situação de confinamento possam ter aumentado, já existiam anteriormente e que ficaram agravadas pela própria situação de estarem mais tempo juntos (no caso dos casais).
O desafio acrescido do ensino à distância
Quem tem filhos está estoirado e esgotado, pois nem conseguem acompanhar os filhos nem conseguem trabalhar como deve ser. Os pais desejam que os filhos regressem rapidamente à escola não só para que consigam trabalhar, mas também porque estão preocupados com o que os filhos não estão a aprender e com a falta de socialização.
A importância da saúde mental
Começa a dar-se mais importância à saúde mental, mas ainda não se dá a importância necessária: Ainda é o parente pobre da Medicina. Não é dada muita importância a psicólogos e psiquiatras e muitas vezes quando tentam dar essa importância fazem-no de uma forma condescendente – “isso é psicológico”, como se fosse menos importante. E não é. Algumas questões psicológicas podem trazer consequências somáticas muito graves.
Ainda há muito estigma, há muito que trabalhar essa questão. Por exemplo, as pessoas não se incomodam quando são vistas numa sala de espera de um consultório de uma outra especialidade, mas têm vergonha de ser vistas na sala de espera do psicólogo ou psiquiatra. Ainda há muita ignorância sobre as doenças mentais.
As doenças mentais são difíceis de explicar e não se vêm objetivamente. Se partir uma perna, vê-se que a perna está partida, mas as questões de saúde mental não se vêm. Ouvimos muitas vezes dizer de alguém que está deprimido, que não consegue trabalhar que “o problema dele é preguiça”. E a depressão é uma doença que pode ser muito incapacitante.
Ainda é preciso dar muita informação e sensibilizar a população em geral para os problemas de saúde mental e para o papel do psicólogo e psiquiatra. Também há poucos serviços de apoio na comunidade e as autoridades competentes têm muito investimento para fazer nesta área, principalmente na prevenção.
Recurso ao acompanhamento psicológico
A necessidade de acompanhamento psicológico surge quando há algum nível de sofrimento psicológico. Normalmente as pessoas procuram ajuda quando se sentem muito assoberbadas ou já não estão a conseguir lidar sozinhos com algums sentimentos provocados por algumas situações de vida e/ou quando apresentam alguns sintomas (ansiedade, tristeza, pensamentos ou preocupações muito invasivas).
Algumas pessoas têm alguns recursos internos que lhes permitem ir gerindo os seus conflitos, outras não têm, ou por alguma razão, externa ou interna, não estão a ser capazes de os mobilizar.
As pessoas podem e devem pedir ajuda logo que sintam que precisam. Não é por isso que vão ser considerados fracas, pelo contrário, por vezes uma intervenção numa fase inicial será mais breve e evitará o agravamento da situação ou a necessidade de intervenção psiquiátrica e medicação.
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