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São rosas, Senhor, são rosas


Rita Sousa Uva


1.

Transformar espinhos em rosas no regaço é arte que se vai aperfeiçoando. Não difere de outros talentos inatos, adquiridos ou importados. Também este implica dedicação, resiliência, vontade de construir, abertura de espírito.

A destruição e a crítica social, relacional ou outra são instrumentos estéreis no que toca à fecundidade das relações - sejam estas afectivas, profissionais, criativas, políticas, económicas, religiosas ou outras – que vamos estabelecendo ao longo da vida. A vida – cantavam maravilhados os poetas da Bossa Nova e nós maravilhados os ouvíamos - é a Arte do Encontro!


2.

E é mesmo.  Acrescento: santos da casa não fazem milagres.

3.

Que se passa, Agripina? - perguntarão os mais atentos. O fim de semana não te correu de feição? As moscas da fruta mordiscaram-te as ameixas vindas do Chile? Não tens figos que chegue? A água do banho estava fria, que aqui não há esquentador para ninguém? O sem abrigo da esquina fez-te um manguito com os pés fedorentos? O ciclista com rabo de cavalo de cor parda e óculos à John Lennon ultrapassou-te no Ring enquanto conduzias muito devagar?  Desembucha.

4.

Agora que se aproxima o tempo de férias; que as aulas à distância e presenciais estão de molho e lentamente a viagem terrestre, ferroviária e, para os mais afoitos, aérea são retomadas, com muitos lugares vazios é certo, a custo, a medo, sem rede, mas elas aí estão; que os jantares  se alargam a mais de cinco pessoas;  que nos começamos a amontoar todos nas ruas e nas lojas, porque não há espaço para todos.

Sim, agora que a calma vai caindo e  aqui se fazem uns estonteantes 28º graus que sabem a 40º e podemos finalmente relaxar os ombros apesar do medo da pandemia que foi e veio e ficou, por detrás das máscaras de olhos sorridentes.

Agora que aparentemente podíamos estar sossegados à sombra e continuando a usar a máscara que também pode ser de pano; que poderíamos todos em colectivo ter mantido o são hábito de ir  lavando as duas mãos e outras partes pudendas com água e sabão e poderíamos enfim conversar com calma, ver pros e contras, acertar agulhas e continuar o trilho da vida em confiança...

5.

As pessoas mais insuspeitas e as suspeitas também começam a dar sinais de desacordo, de de desagrado, de desinteresse. Uns revelam-se súbitamente beligerantes, o cordato irrita-se com o cigarro do vizinho, o sempre em festa fica mal disposto e torce o nariz a festas, o diplomata insulta a mãe do amigo, o pessimista fica eufórico porque comprova a sua teoria que isto é tudo uma cambada e deviam ir todos presos, os calmos agitam-se como em noite de lua cheia, os violentos ficam-no ainda mais, esmurrando, esfolando, esfaqueando, atropelando. Vemos sinais de uma humanidade nervosa, inquieta, com vontade de bater no cão que ladra e e de derrubar a caravana que passa, de perder a cabeça na fila do pão. Os mais inconscientes e de rez mais travessa até lançam festas Covid por esse mundo fora, jogando à roleta russa com as vidas deles e dos outros.

6.

Não é só o Covid e sua pandemia, mais os media histéricos e os números incompreensíveis; já não é só o medo, nem a intolerância nem a frustração, nem todos esses palavrões com que a humanidade se debate desde a sua existência. É a incerteza. Existe ainda antes de nascermos e acomapanha-nos apenas pelo facto de nascermos. Questiona pensamentos, comportamentos, ideologias, molda as nossas acções, determina rumos. Quando a incerteza é muita como agora, forte e avassaladora, pode manfestar-se das mais diversas formas. Nestes loucos anos 20 do de século XXI, essas manifestações estão por aí, só não vê, ouve ou sente quem não quer.

7.

Lembras-te do medo do Covid? Sim? Pois esse continua por aí, sempre à espreita, até uma app tem, vê lá tu, podes descarregar de borla e verificar de segundo a segundo se estiveste numa área onde se suspeita de Covid, se te aproximaste de alguém que se supõe terá Covid porque trabalhou num domingo à tarde, em schwarz Arbeit com o colega da amiga, que tem um irmão casado com uma eslava que por acaso no outro dia paassou pelo talho onde trabalhou o aprendiz do matadouro de carne e que foi jantar fora com a namorada sem máscara e por aí em diante e vais a ver, estás numa faixa de risco verde mas que a qualquer momento, com mecanismos que não controlas e através de pessoas que nunca viste, pode colocar-te na faixa amarela e com muito azar, na faixa vermelha. Se a app te apresentar esse cenário de pré-doença em relação a uma doença de que não apresentas sintomas, referindo-se a pessoas que nem foram testadas.... que fazes tu, cidadão crédulo? Desinstalas a app, nunca mais comes carne ou telefonas todo tremeliques para a linha 112 do Covid, que há-de ter certamente um número em cada país?

8.  Ou, numa alternativa mais sábia, talvez mais ponderada que te protega da síncope ou do acidente catastrófico e emocional, páras, escutas, acalmas-te, lidas com o que há a lidar e anuncias serenamente:

São rosas, senhor, são rosas!




 
 

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