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Racismo real


Miguel Szymanski

O que significam hoje as velhas monarquias e ‘casas reais’ europeias? Olhe-se para o elenco em Inglaterra: uma senhora simpática de idade avançada, o marido com simpatias pela extrema-direita, um filho pretensioso que enganava a mulher com uma amiga da família, outro filho, nos sessenta, que se interessa por raparigas adolescentes e se dá com delinquentes. Ou para Espanha: um velho devasso e corrupto, um filho com dificuldades em manter o negócio da família a funcionar e que parece desconfortável por ter casado com uma mulher muito mais inteligente do que ele, um genro na prisão. Ou para o Mónaco: um alcóolico agressivo casado com uma mulher sofredora, cuja irmã é meio amalucada. Ou para a Escandinávia: um patriarca que vive uma vida dupla durante décadas. A conclusão? São personagens reais que parecem, tal e qual, os vizinhos da minha rua. A principal diferença é que se vestem melhor e, em vez de viverem em andares e fazerem praia na Costa da Caparica, vivem em palácios e fazem férias de iate.


Meghan Markle, uma actriz, não se satisfez com o sonho americano em Hollywood. Casou na Europa com um príncipe europeu e tornou-se princesa. Não foi a primeira a fazê-lo, mas foi a primeira que tem uma mãe negra. Alguém no círculo familiar da Casa Real britânica terá manifestado, num encontro familiar, a sua preocupação quanto à cor que o filho nascituro da ex-actriz, agora princesa, poderia vir a ter. O que é que isto tem a ver com Portugal ou a Alemanha ou uma comunidade de imigrantes? Muito. Mas vamos por partes.


Porque é que todo o mundo fica suspenso num drama familiar algures num palácio junto ao rio Tamisa? E quais serão as consequências, além de por exemplo, o primeiro-ministro da Austrália, já ter dito não fazer sentido o seu país continuar a ter como chefe de estado um outro soberano inglês depois da rainha Isabel II, actualmente com 94 anos, “cessar funções”?


Em pano de fundo está a questão do racismo, ou, na sua forma mais mitigada, a xenofobia ou a discriminação de uma sociedade de castas. A informação veiculada de que um, ou uma, racista se preocupou subtilmente com a cor da pele de um seu neto ainda por nascer em frente à nora grávida assumiu proporções planetárias. Fica, na entrevista dada a um canal de televisão nos Estados Unidos, subentendido que possa ter sido o filho pretensioso da rainha, Charles, o herdeiro do trono, ou a sua mulher, Camilla, a fazer o comentário.


‘Todas as famílias felizes são felizes da mesma maneira, já as famílias infelizes têm cada uma a sua própria história de infelicidade’, assim, citado de memória, começa ou dos mais famosos romances da história da literatura. Aqui está a realidade a confirmá-lo.


Só que a família real britânica é mais do que o típico saco de gatos com ligações de parentesco. É, há décadas, uma telenovela de grandes dimensões, mesmo para os padrões da sociedade dos meios de comunicação social em massa e das redes sociais. Enquanto os britânicos olham para as aventuras dos Windsor, esquecem os problemas dos Smith, Jones, Taylor, Williams e Brownn, num país onde 15% da população se chama Khan, Patal, Adebisi, Kowalski, Silva ou Fuentes. As desigualdades são tremendas, a família real é uma espécie de porto seguro para as memórias do império e da grandeza perdida.

Foto: Clay Bank - Unsplash

Se o príncipe de Gales deixava um botão do colete aberto, isso tornava-se moda. Se uma princesa inglesa - descanse em paz - sofria de bulimia, o tema dominava a imprensa. Se a sua nora agora se queixa de racismo, o tema ocupa jornais e comentadores e nem o último cronista, do mais remoto jornal - imaginemos um hipotético jornal português editado na Alemanha - escapa ao assunto real.


E em Portugal? “A cidade é como um tabuleiro de xadrez, há tantas figuras brancas como pretas”, escrevia um viajante há mais de 500 anos sobre Lisboa. E entretanto ultrapassámos esse atavismo de ter rainhas, reis e príncipes. Estamos uns pequenos passos à frente da vincada sociedade de classes britânica. Mas não muitos. Olho para o meu círculo familiar, para o meu grupo de amigos, de vizinhos e conhecidos, observo as pessoas na rua, nos cafés, nos táxis e é óbvio que o racismo está profundamente enraizado em Portugal.


Até ao governo de António Costa, cujo principal legado político será a sua origem indiana, não havia um ministro negro ou um governante da etnia cigana. Ainda hoje só há uma deputada negra no parlamento. Jornalistas, gestores ou professores contam-se pelos dedos de uma mão. Isto é mais do que uma anomalia estatística. É uma prova factual de racismo.

O lusotropicalismo, um suposto colonialismo suave lusitano, foi um instrumento de propaganda de Salazar, um vocábulo da novilíngua do Estado Novo, do regime que começou a chamar ‘Ultramar’ às colónias. Que passava a ideia de que Deus criara o homem e a mulher, mas a ‘mulata’ e o ‘mulato’ seriam o resultado do espírito fraterno dos portugueses nos encontros com as suas irmãs africanas.


O cidadão comum não revela, normalmente, um racismo assumido, agressivo ou confrontativo; na maioria dos casos é um racismo paternalista, condescendente e subtil. Detecto-o entre governantes e diplomatas, católicos praticantes e ateus, empregados de café ou caixas de supermercado.


Os portugueses emigrados en Alemanha ou em França sabem o que isso é. Muitos esforçam-se por ser mais alemães do que os alemães e mais franceses do que os franceses, mas isso não faz com que uma Le Pen ou um AfD os tenham na sua lista de apoiantes favoritos.


Assimilámos, ao longo de quase um milénio e meio, tanto sangue árabe, judeu, africano e indiano, muito dele em guerras e perseguições, como donos de escravos, através de acordos e casamentos, que temos uma obrigação histórica e moral de combater o racismo que recebemos em herança. E temos de o fazer sempre que a besta abre sua bocarra ou levanta a mão à nossa frente. Sobretudo quando tenta morder ou atingir uma princesa, de Hollywood, ou das barracas ao lado de nossa casa


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