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Quando 2020 olha para o passado

Atualizado: 29 de ago. de 2020


Gonçalo Galvão Gomes

Cabeça de lista ao círculo Europa nas eleições legislativas de 2015 e 2019


Robert P. George, professor da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, Estados Unidos, perguntou aos seus alunos qual seria a sua posição se eles vivessem num estado do Sul (maioritariamente anti-abolicionista), antes da abolição da escravatura em 1865. Os alunos disseram de forma inequívoca que seriam (todos) abolicionistas.


A resposta do professor foi a seguinte, “Obviamente, isso é um absurdo. Apenas uma pequena parte de vocês, ou de qualquer um de nós, ter-se-ia manifestado contra a escravidão ou levantado um dedo para libertar os escravos. A maioria de nós teria seguido a corrente e muitos teriam até apoiado o sistema, beneficiando da escravatura.”.



Claro que nenhum de nós se imagina a apoiar a escravatura, ou a ajudar o partido nazi, ou a promover a ditadura de Salazar. Aquilo que nós pensamos é que estaríamos sempre no lado certo da história, seríamos pela liberdade dos escravos, mesmo que isso resultasse em ostracismo social a todos os níveis, ajudaríamos judeus a salvarem-se do regime nazi, mesmo que isso significasse que a nossa própria família corresse o risco de ir parar a um campo de concentração e seriamos antifascismo, fazendo oposição a Salazar e a lutar pela liberdade, enfrentando até a prisão política se necessário.


Faz tudo sentido, mas é uma completa ilusão. A maioria de nós não faria nem oposição à escravatura, nem aos nazis nem tão pouco ao fascismo português. A maioria de nós seria parte do sistema, muitos de forma passiva, alguns de forma muito ativa e poucos, mesmo muito poucos, fariam oposição.


O problema de julgar o passado com os olhos do presente, para além do óbvio de que, o futuro olhará para nós e fará esse mesmo julgamento, e sejamos conscientes que a forma como tratamos os animais e a natureza, irá garantidamente pintar-nos como primitivos e opressores, é que partilhar um post no Facebook para fazer virtue signaling (sinalização social de virtude), no século XXI, não é o mesmo que ir contra uma corrente social instalada no século XVIII e arriscar tudo o que se tem, ainda para mais sem se ter uma base de conhecimento ou fontes que nos permitam entender o mundo de outra forma.


Isto não significa que devamos branquear o passado ou reduzir acontecimentos como a escravatura a meros factos históricos. Há uma componente educacional que é essencial neste processo, mas da mesma forma que quando pensamos em Martin Luther King Jr. vemos o ativista político e não o seu registo muito pouco simpático em relação às mulheres, também não faz sentido que a ideia principal de estudar a história, seja apenas o foco no pior de cada indivíduo, mesmo naqueles em a coexistência entre os seus feitos e as suas falhas pessoais, deixaram um saldo positivo na primeira parte. Tudo isso acontece, enquanto nos colocamos numa espécie de pedestal da moralidade e julgamos ações passadas, com o mesmo julgamento que faríamos a alguém que nasceu no nosso século. Como se não tivéssemos beneficiado dos erros do passado para estabelecer as nossas noções contemporâneas de virtude e imoralidade.



A estátua Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, representa para a maioria dos portugueses e lisboetas em particular, o esforço individual, mas também coletivo da reconstrução da cidade após o terramoto de 1755. Representa resiliência e a capacidade de ultrapassar obstáculos difíceis, e sim, o Marquês de Pombal foi também um déspota e um tirano. Essa parte da história não ficou esquecida, mas não é isso que a estátua exalta. Alguém imagina um pai a explicar a um filho “ Este foi um senhor que tratou presos políticos como eles mereciam.”?


O padre António Vieira foi uma das figuras mais importantes da história portuguesa, nasceu pobre e filho de pai mestiço, pregou pelos mais desfavorecidos, defendeu os judeus numa altura em que a maioria era contra, criticou a inquisição quando era perigoso faze-lo, e protegeu, da forma possível, os escravos e os nativos do Brasil. Sabemos com certeza que António Vieira do século XXI seria um defensor acérrimo dos direitos humanos, mas será que as pessoas que acharam por bem vandalizar a sua estátua, seriam em 1650, os mesmos paladinos da moral que acreditam ser hoje?


Um dos detalhes surpreendentes nesta interpretação facciosa da história, é que apesar deste julgamento sumário e muito pouco democrático, do que deve estar e não estar exposto no espaço público, há uma tolerância que chega muitas vezes a culto, em relação a outros acontecimentos passados, bem mais próximos de nós e bem mais documentados. A estátua de George Washington em Portland, primeiro presidente dos Estados Unidos da América, que viveu no período compreendido entre 1732 e 1799, foi vandalizada recentemente porque segundo os vândalos, ou ativistas, dependendo da perspetiva de cada um, representa opressão e tiraria do estado, nomeadamente em relação às minorias e particularmente, a afro-americanos. No processo de destruição da estátua, foram pintados vários símbolos comunistas. Há uma certa ironia perversa nesta história, as mesmas pessoas que acham legitimo julgar um homem que nasceu, viveu e morreu num tempo em que a escravatura era parte da sociedade, conseguem idolatrar o símbolo do regime que mais pessoas condenou à morte e à miséria. Nem precisavam de ir ao passado ou procurar por textos ou livros com o título “gulag” ou “holodomor”. Dois minutos de pesquisa no google e saberiam que neste preciso momento, 2020, o Partido Comunista Chinês, que usa o mesmo símbolo na bandeira que eles gostam de replicar, tem campos de concentração para as minorias uigures, onde pessoas são esterilizadas à força e tratadas em condições sub-humanas com trabalho forçado, enquanto não só estes ativistas, mas praticamente todo o mundo, incluindo as empresas que apostam o seu branding (gestão da marca) em slogans progressistas da moda, fazem de conta que não está a acontecer.


“Os exemplos dos tempos passados costumam ser as regras e documentos para os presentes e futuros.

Não há poder maior no mundo que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba.” António Vieira


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