Miguel Szymanski

Uli Hoeneß, presidente do Bayern de Munique, estava já a ser investigado por vários crimes fiscais, depois da denúncia pública de contas secretas que tinha na Suíça, quando, a meio da investigação judicial, a chanceler Angela Merkel decide fazer parte da comissão de honra da lista do dirigente desportivo na sua recandidatura à presidência do Bayern.
A primeira parte da frase é verdadeira e rigorosa nos factos: Hoeneß acabou por ser condenado logo na primeira instância a uma pena de prisão efectiva, não recorreu para a instância superior e acabou na prisão.
A segunda parte da frase é inventada e uma ficção absurda: a chefe do executivo alemão não tomaria uma posição que pudesse ser interpretada como parcial num processo judicial em curso ou como ‘apoiante de honra’ da lista de alguém acusado de crimes graves.
Merkel entende a separação de poderes e não permitiria que o braço executivo do Estado pusesse em causa o trabalho dos órgãos da Justiça. Evitaria alimentar a suspeita de promiscuidade entre a política e o futebol. Não esqueceria que as virtudes de uma pessoa pública que representa a República não podem ser postas em causa por vícios notórios ou simpatias duvidosas na esfera privada.
Merkel tem noção que além de ser séria tem de manter um comportamento que reflicta seriedade.
Já o quadro mental do chefe do governo português parece ser outro. Depois de ter trabalhado durante anos sob a chefia de José Sócrates, no governo e no partido, António Costa, primeiro-ministro de Portugal em funções, vem agora apoiar com todo o seu peso pessoal e político, ambos obviamente indissociáveis, o presidente de um clube de futebol que está a ser investigado por vários crimes, entre os quais fraude, lavagem de dinheiro e corrupção de magistrados.
Enquanto Costa integra e acha normal integrar a lista de honra do presidente do Benfica, sob investigação judicial, Rui Pinto, o denunciante que forneceu milhares de documentos que revelam os esquemas criminosos do futebol, do Benfica ao FC Porto, passou mais de um ano em prisão preventiva por suspeita de ‘tentativa de extorsão’ e crimes como a violação de correspondência. Com os chamados ‘Luanda Leaks’, os documentos divulgados por Pinto levaram à queda da mulher mais rica de África, filha do ex-presidente de Angola. Mas apesar dos milhares de documentos incriminatórios para os dirigentes do futebol português, teme-se, mais uma vez, que as máfias da bola, com o apoio de políticos como António Costa ou de Fernando Medina, o presidente da Câmara de Lisboa, permaneçam sob as suas redomas de impunidade.

Não me interesso por futebol, nem aprecio o jogo, mas interesso-me por enredos policiais sobretudo quando existem ligações à banca e ao governo: os clubes de futebol estão entre os grandes devedores dos bancos nacionais. E quando os bancos se entalam com os créditos que concederam com grande ligeireza, é o governo que lhes tapa os buracos, com o dinheiro que todos os contribuintes, mais tarde ou mais cedo, terão de pagar com o seu trabalho e impostos.
Existem milhares de documentos que já foram vistos e analisados por dezenas de jornalistas, que estão nas mãos do ministério público e que, em qualquer outro país da Europa Ocidental, levariam a uma investigação, a um processo e a penas pesadas contra os presidentes dos clubes de futebol visados. Mas ‘em qualquer país’ não inclui necessariamente Portugal.
Em Portugal os dirigentes desportivos, banqueiros ou políticos encostam-se uns aos outros e têm escudos de protecção quase invioláveis: a inércia, a lentidão e a ineficácia de um sistema judicial, ao qual sucessivos governos têm recusado meios adequados e criado entraves, onde, de adiamento em prescrição, ou de instância em instância, tudo se dilui no tempo para acabar, regra geral, algures arquivado num contentor.
Rui Pinto, o jovem que forneceu milhares de documentos que são provas do modus operandi das máfias do futebol, depois de ter sido detido na Hungria e extraditado para Portugal, está neste momento acusado de quase uma centena de crimes numa clara violação dos termos do mandado europeu que levou à sua detenção (legalmente só poderia ser acusado dos crimes especificados no mandado). O equipamento informático incriminatório apreendido foi retirado de um apartamento para o qual a polícia húngara não tinha mandado de busca. A maior parte desse equipamento não foi selado e o que foi selado apresenta sinais de ter sido selado várias vezes. Isto bastava para que não houvesse acusação. Pior: a entidade que se diz vítima de ‘tentativa de extorsão’, o crime mais grave de que Rui Pinto é acusado, é descrita no livro “Football Leaks”, com base na transcrição de mensagens entre os seus directores, os senhores Arif e Lucas, como um prostíbulo frequentado por presidentes dos grandes clubes de futebol europeus:
“Estou em Miami... Ontem foi espectacular... fui sair com alguns presidentes e até o Florentino veio connosco” (…) «Quero levar algumas raparigas para estarem connosco», escreveu Lucas, perguntando se poderia confiar numa mulher chamada Violet para «convidar» as raparigas em questão. «Nunca me cruzei com ela, meu», respondeu Arif. «Faz o que tiveres de fazer.» (…) Lucas disse que pensava atribuir esse quarto a Pérez. Arif respondeu: «Por 20 milhões. Por Kondogbia.» Lucas respondeu: «É por isso que temos de o tratar bem.”
O mundo do grande futebol está envolto numa teia criminosa. Mas é protegido pela política. Porque dá popularidade e dá votos. E porque ainda ‘pingam’ uns convites para ir ver os jogos, para hotéis, jantaradas e farras até para os secretários de estado.
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