A cultura numérica é pobre, paupérrima aliás, entre nós. E, infelizmente, este nós não se resume a uma nacionalidade, um povo, uma tradição ou qualquer outro traço, o mal é global e transversal. Vivemos os últimos meses a ser bombardeados hora a hora com números e gráficos, dígitos e curvas, com a maior parte da população incapaz de os saber ler. O analfabetismo funcional é um problema grave e até a imprensa afecta, com esta a cair com muita facilidade em leituras parcelares e não elegíveis para a comparabilidade com grande facilidade. Frequentemente, os números são apenas usados para vender a versão da realidade que se quer ver e na qual se quer acreditar.
O problema que prevalece é o mistério do encantamento pelos números absolutos no curso da pandemia do Covid-19. Haverá hoje quem saiba recitar números de infectados, números de mortos e números de recuperados num ou mais países. Alguns até saberão elencar taxas de variação diárias nestes números, o que já um passo mínimo numa direcção mais correcta, a variação, especialmente se analisada em série, é mais informativa que números absolutos desgarrados. Muitos saberão caracterizar a forma das curvas que representam a evolução de números ao longo desta crise de saúde pública: muito melhor, a informação é maior e mais rica e permite inferências mais sustentadas. Mas o mal está mesmo na raiz, e contrariamente até ao que nos habituámos, deixámos que nos enterrassem em números absolutos. Referimo-nos a evoluções de taxa de desemprego, peso da dívida pública no produto, crescimento trimestral, semestral e anual da riqueza...
Há uma razão para estarmos habituados a ser confrontados com taxas e não com números absolutos: normalizam os dados, permitindo a comparação entre diferentes agregados, sejam eles países, regiões ou outros. Alguns meios de comunicação têm tido o cuidado de apresentar tabelas que normalizam os números de infectados, mortos e recuperados do Covid-19 à população por cem mil ou por milhão de habitantes. Estão a prestar um serviço aos leitores, mesmo que no desenvolvimento das notícias tendam a voltar a deixar deslumbrar-se pelos números absolutos. Mas, pelo menos, deixam dados que permitem a uma análise série a quem se interessar e não quiser apenas navegar pela moda do momento. Embora Berlim e Munique tenham praticamente o mesmo número de infectados com Covid-19, a realidade não podia ser mais distinta: a taxa de infecção por cem mil habitantes é duas vezes e meia superior em Munique do que o Berlim. E só com comparações entre números normalizados é que se poderá colocar questões sobre o que está a acontecer ao nível de análise que se pretender e tomar decisões verdadeiramente informadas.
Instalou-se em Portugal, e no estrangeiro, gerou-se a convicção que o país é um caso de sucesso nesta crise de saúde pública. A gestão da crise não me suscita críticas relevantes: no cômputo geral, fez-se o que era preciso fazer de forma relativamente atempada e com unidade dos agentes políticos. A análise do sucesso, incomoda-me mais e custa a perceber de onde surgiu esta convicção sobre o sucesso português, que se tornou uma moda generalizada, não merecendo uma análise crítica nem por meios de comunicação social internacionais de referência – não me direi que se trata de notícias falsas, creio, primeiramente, de resultar do conforto de uma moda que se auto-alimenta num tempo em que se quer despejar notícias em cima do público ao minuto e, em segundo lugar, a falta de olhar crítico e consulta de especialistas em estatística. A conclusão final poderá divergir ou não da anunciada, mas quando o processo é esburacado não é possível aderir às conclusões, e isso é que é grave: é crucial ter segurança na informação e no processo de inferência do que nos é apresentado.
Os números absolutos que Portugal apresenta podem estar a gerar um falso conforto, visto que a dimensão não parece chocar. Uma forma mais reveladora de analisar os números será considerar-se os números normalizados para os indicadores num mesmo período de tempo: ou seja, não faz sentido comparar números sem considerar a população base em análise, assim como não faz sentido comparar dados em diferentes pontos do tempo para tentar avaliar a eficácia de políticas implementadas. Portugal tem, por exemplo, mais casos de infecção por milhão de habitantes que a Alemanha e uma curva que começou a aplanar mais tarde e em números mais elevados. No que respeita a mortes, também Portugal têm um indicador pior que a Alemanha, registando mais mortes por milhão de habitante. E no que respeita a recuperações a disparidade entre os dois países, à data, é estonteante ainda mais estonteante.
Há que atentar também que a análise a um certo ponto do tempo não é estática, e ao longo desta crise temos estado a evoluções estonteantes. Portanto, o que se pretende não é ditar um cenário negro, apenas de cautela sobre notícias que não atentam à forma correcta de trabalhar números para fazer análises comparativas fundamentadas e sustentadas. Ademais, os números, mesmo normalizados, não são verdades absolutas: são bons dados para levantar questões e, com eles, apurar melhor a realidade. Sabemos que nesta crise a realidade de testes entre países é muita distinta, e isso afectará sempre qualquer análise.
Em última instância, o mais importante é não cairmos em facilitismos e perguntarmos se, passando o algodão, neste caso sobre os números, nos depararemos com um branco incólume ou sujidade encoberta.
E será bom ter o algodão à mão para avaliar a promessa do primeiro-ministro português de não instaurar medidas de austeridade no pós-crise de saúde pública. É que, neste caso, também nos habituámos à análise superficial da limpeza do chão e será bom estarmos conscientes do que estará para vir. As melhores lideranças são as que são capazes através da honestidade e transparência envolver e gerar os comportamentos desejados por quem lidera. Gostava que esse fosse o caminho seguido em Portugal.
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