Miguel Szymanski
Ontem, Marcelo Rebelo de Sousa estava infectado com Covid-19. Hoje, um novo teste terá dado negativo. O desejo, obviamente, é que o presidente da República, como qualquer pessoa, se mantenha sem sintomas, com saúde e confinado até a infecção passar ou a suspeita se dissipar. Num lar em Mora, no Alentejo, já morreram este Inverno um terço dos idosos com o vírus. A situação é dramática e não é para tiradas humorísticas, mesmo que Marcelo seja sobejamente conhecido, não só como hipocondríaco, mas também por fabricar factos políticos e inventar as situações mais estrambóticas. Um dia, de acordo com os seus biógrafos, quando era director do Expresso, pôs numa fotografia do então primeiro-ministro uma legenda a dizer “Pinto Balsemão é lélé da cuca”, outra vez, já conselheiro de Estado, inventou um jantar em Belém, e a respectiva ementa, para enganar a imprensa, o famoso episódio da Vichyssoise. Não será o caso desta vez, com o Covid-19 não se brinca. Mas em vários jantares ouvi-o contar coisas que tive algumas dificuldades em acreditar.
Tudo está em aberto nas eleições presidenciais previstas para o dia 24 de Janeiro. A pensar em toda a gente que não conseguirá ir ao consulado mais próximo para votar, ou seja, a esmagadora maioria, por causa do absurdo regulamento de voto para portugueses residentes no estrangeiro, aqui ficam os cenários, no caso de não haver à última hora um adiamento por questões de saúde pública, ou privada.
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O desfecho mais provável é Marcelo Rebelo de Sousa ser reeleito logo a 24 de Janeiro com uma votação superior a 50% dos votos por cinco razões, as primeiras ligadas ao eleitorado, uma última à personagem:
a maioria das pessoas escolhe tendencialmente o que, no dia-a-dia, passa mais vezes à sua frente na televisão;
os eleitores são mais influenciados pela encenação, a forma e estrutura de um discurso, que facilmente confundem com inteligência e experiência, do que pela sua lógica, coerência, substância e valor;
as pessoas, desde que alguém lhes diga que são excepcionais e manifeste afecto, tendem a desligar o sentido crítico;
mesmo sabendo que são truques, a maioria das pessoas sente um prazer atávico em deixar-se enganar por ilusionistas, malabaristas e prestidigitadores;
quinta e última razão, Marcelo foi, até 2014, antes de se candidatar pela primeira vez a presidente de república, ‘presidente vitalício’ duma instituição monárquica, a Fundação Casa de Bragança, ao mesmo tempo fez carreira em democracia durante 30 anos como político de confiança do banqueiro Ricardo Espírito Santo Salgado, fez também carreira profissional durante o processo revolucionário de Abril, como director de vários jornais, fez carreira junto ao poder durante a ditadura, mas sem, na recta final, perder o comboio da oposição à ‘primavera marcelista’: somos uma nação de navegantes e a maior habilidade de Marcelo consiste em sentir de onde vem o vento. Para um oportunista esperto, e apoiado pelo sector financeiro, os tempos são sempre favoráveis.
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O desfecho menos provável é que o actual presidente da república tenha menos de 50% dos votos e que haja uma segunda volta, entre Marcelo Rebelo de Sousa e segunda candidata ou o segundo candidato mais votada/o: Ana Gomes ou André Ventura.
Uma segunda volta com a embaixadora Ana Gomes seria um sinal de esperança. Ana Gomes é uma política que, quando estão em causa valores, não faz contas de conveniência, que não entra em jogos e intrigas, que não faz compromissos podres e tem o combate à corrupção e ao clientelismo como linhas da sua actuação, doa a quem doer. Recentemente doeu ao primeiro-ministro, António Costa. Depois de Costa ter substituído muitos detentores de cargos públicos por pessoas da sua confiança, da procuradora-geral da república ao procurador da UE, Ana Gomes apontou-lhe comportamentos prepotentes e autocráticos. Este governo, que confunde o Partido Socialista e os interesses do primeiro-ministro com o país e os interesses de Portugal, odeia Ana Gomes e essa seria razão suficiente para lhe desejar a vitória. Após 110 anos de república só com homens como chefes de estado, e veja-se onde chegámos, Portugal merece pelo menos tentar uma nova estratégia.
Uma segunda volta entre Marcelo Rebelo de Sousa, um democrata pouco convicto, e André Ventura, um racista e populista assumido, seria a prova definitiva de que a democracia está em crise profunda.
Em Portugal a maioria continua a ser obediente e conservadora, incapaz até de tomar a iniciativa de derrubar pelo voto a figura que veste as roupas do poder máximo em democracia.
Foram muitos séculos de monarquia a obedecer a reis, depois, houve um, brevíssimo, interlúdio cheio de convulsões e instabilidade durante a Primeira República, uma proto-democracia que nunca atingiu a maioridade e nem 18 anos durou, seguida da primeira Ditadura Nacional e das subsequentes longas décadas do Estado Novo a venerar Salazar. Tudo isso deixou marcas psicológicas, profundas. Com o 25 de Abril instituíram-se eleições livres mas as mentalidades não mudaram a sua estrutura formatada pelo autoritarismo. A geração hoje no poder foi educada e recebeu os seus valores do ‘Antigo Regime’, com destaque para o actual presidente da República que, sob a capa presidencial, se agarra a eles com ambas as mãos.
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