Miguel Szymanski
Entre os presentes de Natal tinha recebido um par de esquis, encomendados pelos meu pais no catálogo da ‘Quelle’, que era uma espécie de Amazon na época do papel.
Fazia um frio polar em Bochum, as estradas estavam bloqueadas, ruas, passeios e caminhos intransitáveis depois de uma tempestade de neve. Os termómetros marcavam 15º graus negativos, naquele que viria a ser classificado como um dos ‘Dez Invernos do Século’. Mas eu, ainda preenchido de espírito natalício, não queria faltar à missa. Nessa altura era católico, crente e praticante. “Vou de esqui, mãe”. Saí do apartamento do sexto andar, os esquis aos ombros com pontas que se terão cruzado nas minhas costas como se carregasse a própria cruz do menino Jesus.
Desci de elevador o prédio dos anos 70, atravessei o parque infantil do bairro a arrastar as tábuas nos pés pela neve funda do vasto planalto branco e deserto. Deslizei os últimos 200 metros da rua ‘Auf dem Backenberg’ que, em inclinação e velocidade não era propriamente uma pista negra, até chegar finalmente à porta da igreja de Sankt Paulus. No interior da Igreja estariam seis pessoas, não mais. O padre, o Kaplan Schmidt, sorriu quando me viu entrar com as botas de esqui, já a missa tinha começado. Tinha onze anos anos e nessa tarde decidi que quando fosse grande seria padre. Padre ou explorador do Ártico, ainda não tinha a certeza.
Os anteriores natais, os da minha primeira década de vida, haviam sido todos passados no Algarve, em casa do meu bisavô, que era alemão, e dos meus avós portugueses, de acordo com uma tradição familiar que juntava às tradições lusitanas alguns elementos nórdicos: além do bacalhau tinha de se comer ganso no forno, além dos sonhos havia bolachas tipo Spekulatius. Na sala, um grande pinheiro, por baixo um monte de presentes que só se abriam depois da ceia. Era uma espera no limite da tortura e dos maus-tratos infantis até poder rasgar o papel dos embrulhos. Metade dos brinquedos, dois terços daqueles que eram a pilhas, avariavam-se antes do Ano Novo.
Os tios de Halle an der Saale enviavam sempre livros para Portugal. A tia-avó Elsa, que recebia uma pensão de viuvez, oferecia aos sobrinhos argolas de papel para guardanapos ou bolsinhas de croché feitas por ela. Houve um Natal em que o tio Otto, de Munique, enviou duas caixas cheias de acessórios científicos que nos permitiram, nos dias seguintes, fabricar pólvora e electrificar a capoeira atrás de casa dos meus pais, com luz interior, campainha e um alarme. Nunca mais houve galinhas no jardim.
O espírito de Natal de cada uma de nós crianças revelava-se na forma como recebíamos os nosso presentes. Um dos meus irmão ficava muito quieto, semicerrava os olhos a cada presente. Só depois de me confidenciar “Este ano valeu mesmo a pena”, percebi que fazia cálculos mentais entre o que gastara e o que recebera. Eu, a cada presente, corria para o meu quarto para o guardar junto aos outros num local seguro. Quando era a vez de abrir os presentes da tia Elsa revirávamos os olhos em antecipação. Daí em diante, até à idade adulta, os Natais foram sempre iguais com ínfimas variações. A minha mãe sempre os adorou, com decoração natalícia por toda a casa. Ainda hoje, apesar de entretanto se ter convertido à meditação zen e aos retiros budistas, não resiste a uma dúzia de velas acesas pela casa.
O primeiro Natal em que estive afastado dos meus pais, irmãos e avós foi aos 20 anos. Passei-o com dois amigos, filhos de um indiano rico, em Madrasta, no Sul da Índia, na discoteca de um hotel. À entrada estava um segurança mascarado de Pai Natal, em cima da mesa havia uma garrafa de whiskey, à volta, dançarinas tâmil.
Não fui para padre. Depois de mudar os móveis do meu quarto de adolescente, houve ainda a fase em que quis ser decorador de interiores e, alguns anos mais tarde, playboy. A rigor nunca quis, por minha iniciativa, ir para playboy. Isso veio na sequência de meu pai, um dia, ainda mal refeito do filho que ponderara a carreira de clérigo e decorador, me ter dito, preocupado, que, se continuasse pelo caminho em que estava, ainda iria “acabar como playboy”. A opção na altura, com vinte e poucos anos pareceu-me interessante. Mais do que as alternativas, que se resumiam à dicotomia ‘mau’ ou ‘péssimo’: estudar, para ser advogado de fato e gravata, ou sobreviver de biscates, tipo a fazer de Pai Natal no átrio de um centro comercial.
O Natal como festa de consumo não é culpa dos meus pais, avós ou bisavós. Está na natureza ‘do sistema’. E o sistema, o capitalismo global em modo turbo, é hoje dez vez vezes pior do que há 40 anos. O Papa, o lúcido, critica a forma como celebramos o Natal e a lógica de consumo a que estamos presos. “Este sistema mata” diz a voz do Vaticano a pregar num deserto de valores. Talvez a pandemia ajude a repensar algumas prioridades. E, de repente, sei quem o Papa me faz lembrar: é a cara chapada da tia Elsa.
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