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O Ano da Grande Confusão

Rita Sousa Uva

Toda a gente sabe que as grandes revoluções, os momentos marcantes de ruptura com o estabelecido, as convulsões sociais, venham elas da ideologia, da natureza ou de índole pandémica deixam marcas visíveis, estruturais e são, fundamentalmente, destrutivas. Transformam sociedades, comportamentos, crenças de forma indelével e permanente, mesmo que as neguemos. Por isso nos referimos a tais eventos históricos com letras maiúsculas, simbolizando de um lado, a importância, do outro lado, o respeito e, não neguemos, o medo, quer do passado, quer do futuro, quando não se é capaz de lidar com o presente. Penso que vivemos justamente numa dessas épocas.


Nesta década de 20, em que o temos o maior acesso grátis e célere à informação e liberdade de expressão de toda a história da humanidade, nunca recorremos tanto como agora a clichés. Quem não lançou já para o ar a batida frase “que vivam em tempos interessantes” e depois encolhe os ombros, com a piada fácil “também não precisavam de ser TÃO interessantes”? Ou que diga, meio ufano, que “se julgarmos um peixe pela sua capacidade de subir as árvores, ele vai sempre falhar” ?


Estas frases relembram-nos que “nenhum homem é uma ilha”. No meio desta confusão generalizada e fogosa que se foi instalando ao longo de décadas, atingimos agora o zénite desta transformação e destas cinzas, não conseguimos ainda imaginar que Fénix surgirá.


Precisamos que este temporal passe e acabe de fazer todos os estragos que tem a fazer e até lá, ocupamo-nos da sobrevivência mais elementar. Compramos máscaras, desmarcamos convívios lusitanos, cancelamos encontros, rapinamos outra vez os supermercados e vemos notícias passivamente. Por cada desgraça anunciada ou vivenciada, mais nos fechamos, mais recorremos aos nossos computadores e tablets e outras inteligências artificiais. Em vez de abertura, passamos agora por uma fase de fechamento a tudo, principalmente aos outros.


É difícil esta fase, de duração incerta? É, muito. Ninguém gosta, tal como ninguém gosta de ficar doente, ser despedido, ter um acidente, partir uma perna, ou ir ao dentista para arrancar os dentes do siso e estamos a falar de níveis de desconforto bastante aceitável.


Por todo o lado, em todas as casas e ruas, todos desejariam fechar os olhos, acelerar o calendário e entrarmos rapidamente em 2025, higiénico, saudável, sustentável, de viagens livres e sem impedimentos, sem crimes violentos em pleno dia, com as novas gerações super educadas nas artes e nas ciências e na biologia e no convívio entre povos diferentes, com as religiões pacificadas mais uma vez entre si, que é utopia tão antiga e tão fugidia como a perfeição - só muito de vez em quando se atinge, e rapidamente se desfaz em busca de outra perfeição, ainda mais perfeita que a primeira...


A História prova que sempre que tivemos estes eventos e movimentos revolucionários, uma vez passada a lava de destruição, podemos sair à rua outra vez, em passos tímidos e reconstruir, com cuidado, as novas sociedades, com novas ferramentas e uma humanidade renovada.


Também nos ensina que para passarmos para o outro lado da ponte, temos de a atravessar e mesmo que a ponte se desmorone a meio do caminho, arranjamos maneira, solução. O engenho e a resiliência da humanidade são a maior vantagem que temos para nós próprios e tenho confiança que o Ano da Grande Confusão tem todas as características que nos levam a uma nova era. Ainda não encontrámos foi nome para ela, porque estamos mesmo a meio da travessia e durante esta travessia, temos de tudo: ditadores, palhaços, corrupções e corruptelas, pandemias, movimentos irracionais, devassa de vida privada, exageros policiais, políticos e judiciais, nacionalismos mais ou menos ferozes, re-erguer de fronteiras físicas e ideológicas, violência. Vamos continuar a ter tudo isso até que, tal como começou, abrande, amaine, sossegue.



Foto: Kardo

Nessa altura, que não consigo imaginar ainda como e quando ocorrerá, referir-nos-emos talvez a 2020 tão casualmente como nos referíamos, no passado, a acontecimentos fenomenais e que cito aleatoriamente, sem ordem cronológica ou outra, como a Revolução dos Cravos de 1974, o Verão Quente de 1975, a Revolução de Outubro de 1917, a Revolução Francesa de 1789-1799, o Grande Terramoto de 1755, o Grande Incêndio de Londres de 1666, a Revolução Industrial de 1760 a 1840, a Revolução Americana de 1776, a Boston Tea Party 1773, a Grande Revolução Chinesa de 1966-1976, a Perestroika de 1985-1991, o Maio de 1968, o Holocausto, a Primavera Árabe de 2010-2012, a Reunificação Alemã de 1990, o Dia D de 1944 e tantos, tantos outros, que nos espreitam da História, curiosos para ver o que vamos fazer desta vez.


O Brexit, o Trump, o Covid 19 e todas as suas causas, circunstâncias e efeitos são fenómenos tão actuais que só conseguimos apontar datas de início, mas não de fim.


Não faltam exemplos na história recente e não recente da importância das letras maiúsculas para se referir a anos transformativos que fazem um corte, rasgam tecidos e que sinalizam algo profundo que há-de vir ou indicam já o que está à frente do nosso nariz.


Olhemos para este Ano da Grande Confusão como um desses anos.


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