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Noves fora nada


Rita Sousa Uva

1. Menos gente, suplicam! Estou farto de filas no supermercado, regougam!, Não se aguenta tanta gente!, expelem! Estou farto desta gente!, exclamam outros. Mas que gente esta!, reclamam ainda uns quantos.


2. Ao fim de um ano de confinamento e de apertada cerca sanitária, explodem as frases desconchavadas: preciso de ver gente! Nao consigo viver sem gente! Precisamos de conviver com gente! Temovs de ter gente cá em casa! Suspiram as paredes e suspiram todos em espelho. O Sporting ganhou, tudo para o Marquês!


3. Ah, o lar. Esse cadinho de crescimento em afecto, respeito, tolerância, sempre em construção dinâmica, que tem sido tão fustigado no último ano pelos seus habitantes impedidos de sair à rua à conta do corona e que se entretêm a jogar miolos de pão metafóricos uns aos outros enquanto recordam as fotos do casamento no telemóvel em Cancun em 2014 ou num álbum ratado com as fotos longínquas da lua de mel nas Maldivas em 2009 ou a festa dos 40 do Vasquinho/Celinha/Kiko nos idos de 2017 ou foi 2019? Será que este ano dá para ir lá para baixo? perguntam-se as famílias, inquietas, incertas, inseguras.


Já pagaste o IMI/a renda/prestação/água/luz/gás/seguros/escola/ginástica? Já recebeste o IRS? Quanto sobra? O que é o jantar?


4. A geração nascida entre 70 e 80 já não quer a corrida de ratos dos anos 80 e não quer olhar para trás. Quer, imagine-se,o melhor para os seus filhos, num rasgo de originalidade que faz sorrir a geração anterior, que fazia as contas da casa à mão, num caderninho-sebenta e nos desinfectava os joelhos feridos da escola com alcóol etílico e mercuriocromo e nos deixava comer gelados fora de horas e andar à solta até ao lusco-fusco. Esta geração já não acredita em nada disso. Há perigos à espreita, o digital veio para ficar, os sabonetes pertencem ao passado e nninguém acredita que nos anos 90, se fumava dentro dos escritórios por essa Europa fora e não era apenas em Lisboa - ou porque já se esqueceu ou porque entretanto emigrou e a lei mudou.


5. Naquele tempo, o DDT1 e amigos abriram as facilidades de crédito e foi uma a corrida dourada à compra de imóveis, a 50 anos de dívida, o dinheiro estava barato e o balão do João subia, subia sem parar, todos falavam sem vergonha, nem própria nem alheia, da taxa de juro baratíssima, do negócio da China, da Google em Singapura, do amigo que fez fortuna a vender sapatilhas e da amiga que montou um negócio de empadas para fora e agora vive num condomínio espectacular na Quinta da Marinha e a outra, lembras-te, fazia design de interiores e agora comprou dois apartamentos na Beloura e não quer outra coisa, adora Sintra, ignorando-se que Beloura não é em Sintra, que o trânsito para lá chegar é um pesadelo e que para saires dali precisas sempre de carro, transportes são estrutura que não interessa, quem anda de transporte, afinal se podes ter carro por tuta e meia?

6. Depois, foi o frenesim das viagens curtas, tudo a ir passar o fim de semana a Londres, que é um pulinho e não tem diferença horária e a Madrid e Barcelona, Praga, Budapeste, Bucareste, Sofia, Istambul, Viena, Berlim são todas giríssimas, para depois concluir, no conforto da Portela, ah, mas não era capaz de lá viver!


A Europa é isto mesmo, exclamaram as as famílias entusiasmadas! Os nossos filhos vão para o Erasmus conhecer gente de todo o mundo e apanhar bebedeiras e ressacas em estrangeiro, acabam os cursos e quem sabe ficam a trabalhar numa Holanda, numa Dinamarca, numa Inglaterra, numa Alemanha?


Quem não deve, não teme, quem não arrisca não petisca e assim se percorreu meio mundo, numa azáfama irrepetível, uma humanidade distraída, alegre, prenha de convicções inabaláveis e certezas indiscutíveis, era e é o tempo da época, não há como pará-lo.


7. Vieram as vagas de falência, gente que foi viver para casa dos pais, empregos perdidos na voragem do tudo ou nada, mas ao menino e ao borracho, põe Deus a mão por baixo e a vida é mesmo assim, de altos e baixos. De maneira que as famílias urbano-modernas foram vivendo e resistindo, por entre golpes de asa e torcidelas de rins, num tango de cunhas aqui, favores ali, um emprego na tua empresa concerteza, um subsídio de deslocação acolá, os pais nascidos nos anos 30/40 e seguintes sempre vão dando uma ajuda com dinheiro vivo e a desgovernação vai-se governando. Há sempre parcelas onde ir buscar o dito e não foi nem a troika, nem o pós troika que desorientou os trilhos do bem estar material, nem a abstenção galopante, nem o alheamento, nem a obssessão com enriquecimento fácil, nem o final dos chumbos na escola primária, nem os processos mega na justiça, nem os gabinetes fictícios de combate à corrupção nem os rigorosos inquéritos da transparência.


8. Não foi nada disso e foi tudo isso. De qualquer forma ninguém se lembra, a história só é feita de capítulos nos livros que se escrevem a seguir, nunca é vivida de forma arrumadinha e organizada e tão pouco de forma pensada e com estratégia para além do imediato, da gratificação pessoal, do favorecimento individual e dos seus. Não, meus amigos, o que destrambelhou tudo isto e pôs tudo de cócoras e à toa foi o vírus invisível, que não se vê nem se cheira, não se apanha, não se tacteia, não se saboreia, é uma não existência tão poderosa e presente que nem o Senhor de La Palice se atreve a desdizê-la e não há bisturi que nos valha.


9. Toma e embrulha. Noves fora nada. E vai um.


1 Dono Disto Tudo, expressão idiomática ainda hoje usada para designar o poder do momento.

 
 

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