Miguel Szymanski
Já passaram quase dois terços deste verão e, com o avançar da idade, os verões parecem estar a ficar mais parecidos aos da minha infância.
No início deste mês, depois de um longo almoço em família no Algarve, sob um alpendre ladeado de alfarrobeiras, fui vasculhar caixas de documentos e fotografias no antigo escritório do meu pai. Às fotografias tantas, reparo na data no verso do retrato de uma casal a preto e branco: 1921. Cem anos.
Uma fotografia dos meus bisavós, Friedrich Henzler e Aurora Piñol, em Sant Feliu de Guíxols, na Catalunha. Ainda convivi durante vários anos com meu bisavô e conheço a história da sua vida. De famílias pobres, foi guardador de gansos numa pequena aldeia a sul de Estugarda, à época a zona mais pobre da Alemanha. Aos 15 anos emigrou para a Catalunha — os irmãos mais velhos já tinham emigrado para a América — e foi trabalhar para a fábrica de cortiça de uma empresário alemão que começara por fazer dinheiro com uma oficina de rolhas de cortiça talhadas à mão na Suábia.
O meu bisavô, trabalhador incansável, subiu, ‘fez carreira’, como se diz agora, na fábrica que ficava a cem quilómetros de Barcelona. Aos 23 anos casou com uma catalã, de boas famílias. Poucos anos mais tarde mudou-se com a mulher e a filha mais velha para Portugal e fundou uma nova fábrica de cortiça junto à ‘fonte’ da matéria-prima, as grandes extensões de sobreiros do Alentejo e do Algarve. O guardador de gansos acabaria por fazer fortuna. Quem hoje aterra no aeroporto de Faro ainda vê, entre as linhas de comboio e o porto comercial, as ruínas da velha “Fábrica do Fritz” junto à ria Formosa.
A minha bisavó catalã morreu, no início dos anos 30 em Faro. Além dela, morreram, na década seguinte, mais duas das suas três filhas. Só sobreviveu uma, a minha avó.
Até aos meus sete anos, íamos, sem falhar, todos os domingos, almoçar a casa do meu bisavô e da sua segunda mulher, a minha bisavó Eulália, que, entre outras coisas, me ensinou a pôr leite no chá, jogar canasta e a não fazer batota.
Os almoços de domingo na moradia senhorial no centro de Faro eram obrigatórios. De verão, almoçava-se no jardim sob um caramanchão coberto de era. O “velho Fritz” fazia questão de ser ele, de manhã, a ir ao mercado escolher o peixe. Além da família, almoçavam connosco sempre os amigos do meu bisavô, a ‘Comadre Marquinhas’ e o marido, o ‘Compadre Guerreirinho’, a Albertina e o Júlio Sancho.
O casal Guerreirinho vivia próximo, também no centro de Faro, numa casa em forma de navio. Era um pescador inveterado e não me lembro de o ver sem, pelo menos, a ponta de um charuto no canto da boca. Fizera fortuna a vender seguros, fora um dos fundadores do Banco do Algarve.
O Júlio Sancho era o único médico radiologista no Algarve, a mulher, a Albertina não dizia ‘xarém’ ou ‘papas de milho’. Dizia ‘mousse dorée’. Vinham num reluzente boca-de-sapo conduzido pelo senhor Martim, o motorista. Aos domingos, os amigos levavam as empregadas, que se juntavam ao staff da casa, para ajudarem a preparar e a servir o almoço. A ementa era sempre um tópico de conversa, os salmonetes de Quarteira, o salmão dos Pirenéus ou os percebes de Sagres. Um amigo do meu bisavô viajava num grande carro americano e transportava na mala, refrigerada com blocos de gelo, uma ‘jamonera’, uma estrutura para fatiar presunto, e umas garrafas de vinho. Já nos anos 50 o meu bisavô, além da cortiça, usava as salinas antigas para criar douradas que eram exportadas para Itália.
Depois o meu bisavô adoeceu e veio viver para Lisboa, num prédio, em Campo de Ourique, mesmo em frente à casa Fernando Pessoa. Lembro-me da última conversa com ele. Foi das poucas vezes que me recordo de falarmos directamente um com o outro (eram muitas as bisnetas e muitos os bisnetos).
“O Miguel gosta mais de Faro ou de Lisboa?” Pareceu-me, na altura, cosmopolita e arrojado responder-lhe que gostava mais de Sevilha, onde se bebia coca-cola, havia escadas rolantes e televisão a cores. Lembro-me de ele, que durante muitos anos tivera também uma fábrica em Sevilha, ter sorrido.
Os meus bisavós morrerem, mas os almoços de família continuaram pela vida fora em casa dos meus avós e dos meus pais. A especialidade do meu avô, um militar na reserva que toda a gente tratava por “Senhor Major”, era a ‘vila de amêijoas’: os bivalves da ria dispostos em cima de uma chapa, cobertos de esteva seca, que, ao queimar, liberta um fumo aromático. O convívio à mesa com quatro gerações continuou por muitos anos, até a minha avó morrer em 2019.
De verão gosto de juntar a família e amigos próximos à volta de uma mesa. A construção da felicidade passa pela recriação de cenários de felicidade que já vivemos. De manhã vou comprar peixe ao mercado. Depois fico a grelhar o peixe, porque agora o staff somos nós, ninguém traz empregadas ou criadas. E fico contente por isso, na esperança que todas as famílias possam ter os seus almoços de verão, sem terem de servir os almoços dos outros (a última empregada dos meus bisavós, a D. Conceição, tem entretanto mais de 90 anos e vive num lar de terceira idade na Lapa em Lisboa).
A felicidade é a continuação da felicidade dos nossos avós com outros meios. E não durará mais tempo do que a deles.
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