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Lisboa antiga

Miguel Szymanski


Foi entre os meus quatro e cinco anos. E é, entre as minhas memórias mais antigas, das mais nítidas: as viagens de carro para Lisboa com o meu avô, com paragem obrigatória no restaurante Canal Caveira, no meio do Alentejo, para almoçar Cozido à Portuguesa, e as idas com ele à loja de animais, numa esquina da Avenida Casal Ribeiro, com paredes cheias de gaiolas de pássaros e aquários de peixes de todas as cores.


Na altura o meu avô tinha no jardim uma arrecadação com aquários, de vários tamanhos, e um particularmente grande, ‘de exposição’, na sala. Eu acompanhava-o muitas vezes à capital, quando ele ia ‘tratar de assuntos oficiais’, comprar peixes e o seu lote de café no Chiado.


Nas viagens de regresso, de Lisboa para Faro, enquanto o meu avô lia jornais ao meu lado ou conversava com o motorista à nossa frente, eu ficava agarrado aos pequenos sacos de plástico com água e observava os peixes no interior ou olhava pela janela na esperança de ver, finalmente, um dos lobos da Serra do Caldeirão que o Manel Bombeiro, ao volante, várias vezes me tinha dito que se escondiam por de trás das árvores.


Nunca mais tinha entrado naquela loja, nem imaginava que ainda existisse, até passar por ela este ano com as minhas filhas, numa ida a Lisboa em pleno ‘lockdown’, e resolver aproveitar para comprar comida de cão

Pouco depois da última dessas viagens a Lisboa com o meu avô, há quase meio século, o aquário grande da sala partiu-se e centenas de litros de água escorreram pelo parquet e os tapetes de Arraiolos. A minha avó quando se aborrecia sabia ser um bocado alemã, para não dizer mais, e a grande inundação na sala - não era a primeira - foi o princípio do fim das aventuras aquaristas do meu avô, que começou a dedicar-se mais aos outros passatempos com recipientes de vidro menos perigosos, como beber Pastis ou Calvados no jardim com os amigos que o visitavam todos os dias.


O meu avô já morreu há muito tempo. Mas no corredor da velha moradia ainda está a pequena estante de livros com centenas de policiais da colecção Vampiro que foram a minha iniciação no género policial (a literatura mais séria estava atrás de prateleiras com portas de vidro no escritório). Brevemente a casa será vendida, alguém de lá retirará todos os objectos, quadros e móveis que me acompanharam a vida inteira.


E Lisboa mudou. Onde funcionaram durante décadas velhas mercearias, abriram, primeiro, as ‘Lojas dos 300’, onde tudo custava trezentos escudos, bancos ou lojas de comprar ouro, para se transformarem, seguindo as modas e as economias, em espaços de produtos ‘gourmet’, em ‘concept stores’, ‘lounges’ disto ou daquilo ou agências imobiliárias. Agora, muitas estão fechadas sem se perceber se voltam a abrir. São raros os apontamentos na cidade que permaneceram inalterados, os testemunhos genuínos de uma vida antiga, as provas que resistiram ao tempo de um outro tipo de cidade. O que surgiu foram muitas falsas memórias, restaurantes, cafés, padarias e lojas que se fingem antigos e tradicionais e iludem os turistas com ornamentos de esferovite a imitar estuque e apliques de plástico a fingir talha dourada.


Apontei a loja de animais às minhas filhas antes de entrarmos e li da tabuleta por cima da porta: “Correia&Serpa, aves, peixes, cães, gatos, roedores”. Falei-lhe das memórias que tinha de lá ir com o meu avô quando ainda era mais novo do que elas. O meu avô era o melhor companheiro que uma criança podia desejar, tratava-me de igual para igual, nunca fazia comigo brincadeiras ou jogos infantis e podia passar horas com ele em conversas sérias, sobre casas com passagens secretas e túneis ou a técnica como os elefantes em África se secavam depois do banho. Muitas vezes ia com ele de madrugada à praia ou passava toda a manhã até à hora de almoço no seu gabinete, que tinha uma varanda com vista para a catedral de Faro e portas duplas de madeira, com tanto espaço entre elas, que eram o melhor dos esconderijos. ” Pai, talvez na loja ainda se lembrem do teu avô, as memórias boas não se apagam”, disse a Maria que tem dez anos e uma veia nostálgica como eu. Pensei em explicar-lhe que meio século é muito tempo, que as pessoas não ficam tanto tempo a trabalhar no mesmo sítio e que as memórias se vão diluindo com o tempo, até as dos nossos avós. Mas já estávamos em frente à porta de entrada da loja e decidi deixá-la no seu mundo de fantasia.



Lá dentro, dois funcionários carregavam gaiolas e sacas de ração de um lado para o outro. As minhas filhas ficaram na zona da entrada, fascinadas com os papagaios, as araras e os outros pássaros. A loja tinha parado no tempo, os cheiros eram os mesmos, os ruídos e as cores, a ausência de pressa e a forma de atender os clientes.

Antes de pagar, percebi que a Maria estava a olhar para mim. O senhor atrás do balcão devia ter mais de 70 anos, pensei. Ganhei coragem e contei-lhe que, “há muito tempo”, “quando era criança”, lá tinha estado algumas vezes, com o meu avô. Ele perguntou-me pelo nome e eu disse-lhe. “Vieira Branco”.


“Ah, o senhor major, lembro-me muito bem! Vinha cá com o Manel, o motorista. O Manel e eu ficámos amigos, mas já não o vejo há quase 50 anos…”.


O império-onde-o-sol-nunca-se-punha de antigamente cabe num aquário; o passado e o agora são memórias do mesmo rio e as crianças sábias entendem isso.


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