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Et kütt wie et küt (é o que é)


Rita Sousa Uva


Ah, os brocardos. Essas pérolas de sabedoria enxuta de que o twitter e afins não se apoderaram ainda, porque isso significaria atenção ao detalhe, respeito pela história e humildade que dure mais do que 15 segundos, que é fenómeno super raro e para o qual não há tempo, não há pachorra, não há interesse.


Pois se a velocidade dos relatos do que acontece e principalmente do que não acontece é tão intensa que nem me ouço a mim próprio a pensar, como é que vou sequer perceber que uno, os outros também pensam, secundo, há quem pense diferente de mim, tertio, essa diferença não faz do outro burro ou pateta, nem faz de mim um génio e quarto, a realidade diverge consoante o observador. Se um vê o algarismo 9 e o outro vê o algarismo 6, dependendo da posição de onde observam o mesmo algarismo, como resolver este impasse, este bloqueio de visões, este conflito aparentemente insanável sem gritos, choro, suor, lágrimas, insulto fácil, chantagem primitiva? Pois aí é que está. Se fosse fácil, o mundo seria fantasticamente aborrecido e perderíamos o incentivo para superarmos as nossas faltas e defeitos e avançarmos para melhores ou variadas paragens.


Pois imagine o leitor, que está a olhar para o écran em casa a ver se percebe o ficheiro excel ou word que tem em frente, enquanto a sua cabeça devaneia com os sentidos postos no fim de semana. Ou, num outro cenário versossímil, o leitor está a fazer as compras para a semana durante a jornada de teletrabalho que é para isso mesmo que serve, para ser flexível e produtivo ao mesmo tempo. Imagine por um instante um cenário do género Truman Show – mas atenção, não do verdadeiro,aquele que está na Casa Branca, estou a falar do outro, que era um filme e que até era muito engraçado e tinha o John Carrey a fazer de ingénuo num programa de televisão dentro da televisão, assim uma espécie de Big Brother, mas da televisão, não o outro, o do livro, aquele que escreveu o Triunfo dos Porcos, as referências modernas tornaram-se mais complexas, temos de indicar a fonte material exacta – é de que altura? é pessoa, filme, livro, artigo, facebook, instagram ou twitter? é mito urbano ou isso aconteceu mesmo? - .



Mas dizia eu: imagine o leitor, nesse cenário improvável, que sai de casa e encontra passeantes na rua sem máscara, calmos, com sorrisos beatíficos na cara e cheios de energia pacífica de quem está pronto para fazer mais um dia feliz e cheio de sentido, a todos os níveis.


Avance um pouco mais neste delírio e ponha-se num tempo em que a pandemia terminou, há vacinas universais para toda a gente e até encontraram medicação que acaba com os sintomas e seus efeitos laterais num curto prazo de 48 horas, sem sequelas nem tosses a montante. Não há cães vadios nem gatos atropelados no caminho, e respectivos resíduos também não, as abelhas estão recolhidas nos seus hóteis e os sapos não atrapalham o trânsito, pois têm autoestradas próprias e os coelhos estão recolhidos nas tocas.


Não tem multas no pára brisas por ter estacionado dois minutos enquanto ia buscar pão na rua que nunca tem lugares de estacionamento e todos sabem, principalmente os fiscais e não há um um único ciclista a querer atropelá-lo. Está um sol suave, seguro de si e um ventinho morno, 24º graus, a rua corre sem grande pressa nem frenesim, não ouviu sirenes nem bombeiros, enfim, assim um cenário mesmo idílico. E o leitor continua pelo dia adentro, chega sem problemas ao trabalho, os colegas cumprimentam-no com sorrisos, tudo é feito em ordem, disciplina, silêncio e caramadagem. Tudo é feito a tempo e até recebe elogios do chefe e no final do dia, tem um jantar sem discussões com filhos ou enteados e todos agradecem a comida. No final do jantar, fica tudo à mesa a conversar, sem gritos, sem amuos e no final, todos ajudam, ninguém reclama e a cozinha é um brinco e a roupa está toda passada a ferro. Ah e a cereja em cima do bolo, no final do dia até consegue ver um filme sem adormecer todo torto no sofá e a sua cara metade não o acorda trezentas vezes para ir dormir.


Já se imaginou nesse sítio, leitor? E o que sente? Agora imagine que era assim todos os dias. Sem conflito, sem oposição de ideias e de comportamentos, tudo aséptico, racional, sobre rodas, sem bloqueios ou obstáculos. O que sentiria? Alívio ou um tédio profundo que o levaria a mergulhar por um lago adentro em busca de perigo e de excitação, se não fosse mais radical e emigrasse para um cantão sossegado e suiço no meio dos Alpes, sem gente à volta, que o inferno são os outros? Hum? O que seria então? Já desmaiou de rotina sem sabor?


Pois é. Nem oito nem oitenta. Quando chove, queremos sol. Quando faz sol, queremos chuva. Não nos esqueçamos nunca da maravilha que é estarmos vivos. E se tivermos isso presente, podemos aceitar tudo sem revolta, e dizer: é o que é.


Ou, na variante köslch, et kütt wie et küt.


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