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E agora?


Rita Sousa Uva

Perguntava-me eu na última crónica, sem esperar verdadeiramente por resposta, que essa, está bem à vista. Os bombardeamentos continuam, a destruição é vista em tempo real e diferido na televisão, as pessoas fogem para onde não há bombas, umas morrem pelo caminho, outras morrem nos locais atacados, crianças enfiadas em capuzes e barretes de lã e kispos de diversas cores e feitios fitam-nos de olhar vazio umas, outras sorridentes, enquanto as mulheres choram, os homens choram, choramos todos e a guerra continua.


O Ocidente desdobra-se em sanções económicas e apelos angustiados ao cessar fogo, os comentadores e os jornalistas desdobram-se em relatos assustadores do que está possivelmente a acontecer, do que possivelmente aconteceu e do que possivelmente poderá vir a acontecer, o tom permanente é de susto, medo, catástrofes existentes e anunciadas, misturadas com os números do Covid e as aparições mediáticas do Presidente da Ucrânia, transformado em herói da resistência, idolatrado pelos media e convertido no baluarte da integridade, democracia e civilização ocidental. Estranho mundo este, em que a realidade ultrapassa a ficção e nem damos conta, já acreditamos em tudo. Muito brevemente, surgirão canecas com motivos Zelenski, sweat shirts cor de caqui, t-shirts cor de burro quando chove, canetas de tinta amarela e azul, e guarda chuvas Zelenski que terão a peculiaridade de só poderem estar abertos, não se poderão fechar e ficar sossegados a um canto quando não chover.


O estilo cansado e macilento, o discurso incessante de queixa e pedidos de ajuda, pontuado por acusações diversas e comparações sem resposta possível, a imagem virtual diaria e omnispresente, matraqueada sem pausa e sem limites ao que se exige arriscam perder o significado e a força. Se nos momentos de choque inicial podemos ter sido acossados de amnésia colectiva, não fiquemos cegos e pasmados perante a barba rala e a t-shirt esverdeada de pendor militar, que lenta e seguramente está a marcar o imaginário masculino ou pelos menos o imaginário de alguns dirigentes. Mas, demos tempo ao tempo, muito brevemente não será apenas Macron a envergar hoodies, as modas pegam-se e a infantilidade também. O Joe acabou de chamar carniceiro ao Vladimir, que insiste em chamar a este ataque brutal na Ucrânia de “operação militar especial”. Ainda a procissão vai no adro e os fabricantes e distribuidores de armas exultam em lucros crescentes. De um dia para o outro, a Ucrânia deixou de ter oligarcas ou corrupção - está a ser reduzida a cinzas, afinal - os Panama Papers nunca existiram e o Servo do Povo saltou da ficção para a realidade, num golpe palaciano cujos pormenores e bastidores se conhecerão daqui a muitos, muitos anos.

Entre ameaças permanentes do que está aí e do que está para vir, da gasolina a galopar e da farinha a acabar (segundo relatos locais, em diversos países), e de acusações várias entre os vários joguetes neste cenário desesperante de destruição desalmada, o espectador/consumidor assiste, impotente, angustiado e incrédulo. Quem já a viveu, directa ou indirectamente, explica-me: guerra é assim, suja, brutal, imprevisível.


Tenho para mim que a forma mais segura de se ficar maluco é continuar a consumir estes produtos de desinformação e medo com que nos enchem os sentidos diariamente. Não advogo censura nem desconexão nem ignorar o mundo à nossa volta, longe disso. Mas temos de ter um mecanismo de defesa interior, de filtro para não nos sentirmos todos personagens de um jogo maníaco onde palavras, insultos, piadas parvas e bombas verdadeiras se lançam para o ar sem medir as consequências, sem pensar antes. O leitor, se estiver ainda desse lado a ler estas linhas, não tem calafrios quando ouve ou lê que enquanto os bombardeamentos e a destruição continuam, se fale despudoradamente em negociações para a paz? Mas que negociações pode haver se uma parte está a ser destruída diariamente? Ou, por exemplo, quando se escreve e afirma, como se de um jogo de Play Stations se tratasse, que a ameaça nuclear e biológica são uma possibilidade mas há que aguardar e ver o que se vai passar? Mas, perguntará o leitor, qual é o ponto onde se tem de chegar para agir preventiva ou defensivamente? É quando for lançada a primeira pulverização? É quando começarem a aparecer casos de envenenamento e doenças estranhas e desconhecidas na população? Ou devia ter sido quando os nossos computadores ficaram avariados, os nossos dados devassados e as nossas contas, bancárias ou outras, sujeitas a roubos de identidade e permanente vigilância? Ou será quando ficarmos todos gelados em casa, comendo comida em lata expirada, enquanto houver? É quando depois desta primeira onda bonita e ingénua de solidariedade em que somos todos ucranianos não houver nem comida, nem água, nem cuidados médicos, nem alojamento, nem trabalho para todos? O leitor não se indaga, quando lê que os números de deslocados e refugiados são cerca de 10 milhões (tem dias, também já li 6 e 3 milhões e já nem falo de mortos, que essa é uma incógnita para descobrir pelos historiadores do futuro), onde estão eles? Como vivem? Alimentam-se de quê? Para onde foram?


Não tenho resposta para nenhuma destas perguntas, naturalmente. Mas gosto de ter a liberdade de as poder fazer, de poder questionar, publicamente e na minha língua nativa, sem medo, sem preocupação, no conforto da minha casa, intacta, com luz, água quente, comida, aquecimento, canalização e saneamento básico, roupa e meios para viver confortavelmente, sem penúria, desnutrição ou pânico de levar com um míssil ou uma bomba no apartamento onde vivo. É esse conforto e segurança que a população geral da Ucrânia – e da Rússia e de tantas outras partes do mundo, que por serem mais longe não nos atingem tanto - perdeu e perde todos os dias, em crescendo, sem que nada aconteça para se estacar esta carnificina. Até quando?

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