Rita Sousa Uva

Metade, é força de expressão. Desde a passada sexta-feira dia 9 de Abril de 2021 que ficámos a saber que o despacho instrutório na Operação Marquês deixou cair cerca de 90% das 189 acusações formuladas pelo Ministério Público contra 28 indivíduos em 2017. E destes 28 indivíduos, como na lenga-lenga que deu origem a este título, não ficaram senão seis potenciais acusados. E destes seis, veremos quem irá a julgamento. E desses que irão a julgamento, veremos então qual o desfecho desta saga judicial de contornos políticos polvorosos, que terá formalmente começado nos idos de Novembro de 2014, com a prisão em directo de um dos heróis principais desta história de saque e enriquecimento que tem tido mais peripécias, recursos e reviravoltas do que qualquer série Netflix. 6728 folhas, mais página menos página, já podem servir de base para um futuro guião de um qualquer luso-descendente, que se lançará no mercado criativo com a série espectacular “Marquês”, lá para 2030. Quando esta geração olhar para trás, com ancas e olhos artificiais mas vacinada contra várias epidemias e ainda mexendo, vai dizer para o companheiro ou companheira do lado e dizer, rindo-se é pá, tu lembras-te do Sócrates? Viste a série “Marquês”, na primeira série? Muito bom, não está, incrível, os diálogos super realistas, não achaste? Achas que vem aí uma segunda série?
Adiante. Para minha não tão grande supresa, ficámos também a saber nessa sexta-feira que a chamada opinião pública é, além de epidomologista e virologista, não só jurista como juiz, com especialidade em Direito Penal e criminalidade económica. E tornou-se claro também que está furiosa, furibunda e com ganas de partir isto tudo.
Compreendo a perplexidade furiosa e partilho da frustração de todos nós com a lentidão do sistema e com a sensação desagradável e amarga de que em Portugal de 2021, temos de um lado, um sistema de justiça eficaz e implacável para com a turba indiferenciada e para a classe ensanduichada entre impostos crescentes e pensões cortadas; e do outro lado da barricada, um sistema mole, benevolente e artificioso para as castas políticas, sociais e económicas que se foram instalando no poder e por lá ficaram, mandando e desmandando sem critério ou moral e sem aparente escrutínio, formal ou informal.
Não faço apologia de ninguém, nem defendo uma personalidade em especial. Não conheço o caso nem nenhum dos intervenientes do processo nem tão pouco me atrevo a fazer juízos complexos sobre se os crimes prescreveram ou não, ou se os rendimentos ilícitos deviam ter sido declarados ao fisco ou não ou seja lá o que for sobre a acusação e o seu trabalho e o da instrução.
Mas posso fazer meia dúzia de observações, umas pinceladas vá lá, sobre o desvario em que o meu querido país se está a deixar ir, à solta, sem rede nem orientação que se vislumbre e a céu aberto, sem pudor nem vergonha, confundindo transparência e liberdade de expressão numa democracia com justiça popular descontrolada e misturando raivas antigas com raivas modernas, num cadinho explosivo que não matando, mói, corrói a confiança na Justiça e nas instituições e apodrece o tecido social.

Comecemos e terminemos pela pompa artificial e barroca da leitura do despacho instrutório. O assunto é mediático e importante? É. É razoável sensato ou necessário que o juiz leia em voz alta um resumo longuíssimo de uma decisão instrutória aberrantemente longa, durante 3 horas e meia, em directo, como se tudo isto fosse um espectáculo de entretenimento? Não, sob todos os pontos de vista, incluindo o da justiça. Ao expor-se desta maneira, a Justiça não sossegou ninguém. Antes pelo contrário, deixou passar a ideia de que os seus mecanismos também assentam em animosidade interpessoal, na busca de ardis burocráticos e processuais e no apontamento de falhas dos demais intervenientes e até dos seus pares. Permite e fomenta as mais diversas considerações políticas, extravassando o seu âmbito e mandato. Pouco importa para que lado pende: ao expôr as suas entranhas labirínticas nesta conferência de imprensa onde todos alinharam – juiz, jornalistas, media, políticos, público e o próprio acusado principal, sentado na primeira fila – deu azo a que um processo que já se revelava dúbio e repleto de incidentes difíceis de explicar, se torne mais confuso ainda, pouco limpo, poluído das mais diversas opiniões e aberto a todas as interpretações e conspirações, parecendo resumir-se, no final, a uma luta surda entre dois juízes do mesmo Tribunal perante a mesma descrição de factos, com consequências penosas para toda a colectividade.
Daí em diante, tudo e o seu contrário se tornaram possíveis. Circula uma petição para afastar o juiz, uma reinvidicação de justiça popular que devia desde já ser desmascarada; convocam-se manifestações diversas, publicam-se piadas várias e cartoons bem engraçados, os comentadores e escribas do burgo têm pano para mangas para mais uma semana, pelo menos até se descobrir ou for revelado o próximo desvio, crime ou incidente. No meio desta cacofonia, o efeito prático de tanto circo foi: os bens previamente arrestados foram libertados (pasme-se), o Ministério Público viu a sua reputação arrasada e o seu complexo trabalho de investigação jogado para o lixo; o ex-primeiro ministro presta declarações como se tivesse sido julgado e ilibado judicialmente e vai pedir indemnizações e publicar mais um livro; o banqueiro poderoso ficou quieto e calado, como convém; a população enraiveceu-se e espumou ódio; e o sistema que permitiu isto tudo, esse, não moveu uma palha. Não se ouviu uma linha para anunciar uma reforma do sistema judicial que impeça e previna novos casos de fulanização, subjectividade e palavra contra palavra ainda antes que qualquer julgamento seja feito, concluído e transitado em julgado. Comenta-se sobre a lentidão do sistema - é abuso da palavra lentidão. O sistema judicial não é lento, é pasmacento. Não anda, circula sobre si próprio, numa espiral insana. Esgota-se de tal maneira em questínculas e exegeses que se torna nocivo e acaba por destruir o seu objectivo: fazer Justiça.
Não esperemos que fique reduzido a nada, como na lenga-lenga.
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