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“Catchos ku prindido. I suma dus alma ku marado”

Atualizado: 3 de set. de 2020

Entrevista | Welket Bungué, o protagonista luso-guineense do filme “Berlin Alexanderplatz”, de Burhan Qurbani


Rita Guerreiro


“Catchos ku prindido. I suma dus alma ku marado“ pode sumarizar bastante sucintamente a personagem de Welket Bungué no filme “Berlin Alexanderplatz. A frase, dita pelo próprio em crioulo da Guiné-Bissau, significa “Pássaros engaiolados. São como duas almas aprisionadas. “Estão, na verdade, dois pássaros engaiolados no filme, na gaiola.”, diz-nos Welket. No entanto, esta é uma metáfora que assenta que nem uma luva à sua personagem, Francis, que parece presa num sub-mundo violento, injusto e perigoso. Apesar da sua vontade de ser um bom homem - “ich will gut sein” (“eu quero ser bom”), diz ele a determinada altura do filme - a vida continua a arrastá-lo para um buraco de onde parece cada vez mais difícil sair.

Uma adaptação do romance homónimo do escritor alemão Alfred Döblin (1929), o filme estrWBu finalmente nas salas alemãs a 16 de Julho, após a data inicial, Abril, ter sido adiada devido à pandemia de COVID-19. “Fomos afectados por esta interrupção forçada do acesso às salas de cinema, mas por outro lado, já gozávamos da vantagem que é o facto de o filme ter sido visto e criticado positivamente aquando da sua estreia na Berlinale”, disse Welket Bungué ao PT Post.

O actor e realizador falou ao PT Post de “Berlin Alexanderplatz” e do seu papel nesta que define como uma obra repleta de “sensibilidade humanística”, bem como dos seus actuais projectos, que incluem as curtas-metragens “Treino Periférico” e “Bustagate” e ainda um livro autobiográfico.



Equipa de “Berlin Alexanderplatz” na antestreia do filme num cinema ao ar livre em Potsdamer Platz, em Berlim, no passado dia 12 de Julho. © Divulgação


PT Post Como foi a estreia de “Berlin Alexanderplatz” na Berlinale em Fevereiro passado? Foram dias intensos em Berlim?

Welket Bungué A estreia de “Berlin Alexanderplatz” foi extremamente emocionante. O filme foi feito com muito amor e, a meu ver, muita sensibilidade humanística, em relação às personagens e ao aspecto literário que esta obra tem. Fomos muito, muito bem recebidos pelo público e pela direcção do festival. Foram dias muito intensos e muito bem vividos.

PTP Sabemos que tiveste uma language coach que te ajudou muito a encarnar a tua personagem. Quando te vês no ecrã a falar alemão o que achas? Alguma vez tinhas imaginado numa performance deste tipo?

WB Foi imprescindível ao longo deste processo. Comecei primeiro em Portugal com a Claudia Weber, uma professora de alemão portuguesa que me deu formação durante três meses. Quando vim para Berlim, passei dois meses intensivos a ter aulas sobre fonética alemã com a language coach Lena Lessing. E aí foi de facto muito evidente o desenvolvimento do meu entendimento em relação à língua e à cultura alemã, mas também em relação à construção da personagem. Fiz depender a construção da minha personagem das sensações que fui tendo ao longo da aprendizagem da língua alemã e também da minha circulação pela cidade de Berlim e pela Alemanha. Tentei fazer com que esse aspecto de descoberta, que eu próprio estava a viver enquanto pessoa, fosse também transferido para a personagem, que é também um recém-chegado à Europa. Algumas das dicas essenciais para mim para entender a língua foram por exemplo perceber que o “r” no final das palavras praticamente não é pronunciado. A forma que arranjei para decorar as palavras foi transcrevê-las foneticamente, para conseguir pronunciá-las. Antes de começar a filmar conhecia todo o texto muito bem e todos os dias antes de gravar ensaiava para memorizar aquelas frases. Precisei de um guião bilíngue alemão-inglês e fazia as minhas notas na versão alemã. Foi um exercício muito intenso, profundo e importante para conseguir interpretar esta personagem. Sinceramente, consigo perceber que o trabalho foi bem feito porque tive a ajuda da dialect coach e porque às vezes o público vinha falar comigo em alemão achando que eu era um falante nativo de alemão, que não é o caso (risos).

PTP Pois, as pessoas não sabem que tu ainda és relativamente novo na Alemanha. Vives em Berlim desde Novembro passado, porque escolheste esta cidade?

WB Berlim tem a capacidade de dar espaço, voz e público para contar as histórias pessoais. Aqui sou um periférico no meio de pessoas periféricas. A cidade tem esse caráter babilónico: é uma grande interseção humana e cultural

PTP Voltando ao filme, queria falar agora da tua versatilidade: Cenas de luta, festa, assaltos, fuga, sexo… enfim, fazes praticamente de tudo. Alguma destas foi especialmente exigente para ti?

WB O filme tem de facto cenas muito exigentes, tecnicamente falando, e foi muito desafiador ter que fazer cenas íntimas com várias actrizes, algumas delas em que ainda tinha os dois braços, uma última em que já não tinha. Ter que lutar contra cinco adversários ao mesmo tempo, só com um braço, ser empurrado de um carro em andamento, quase morrer afogado… foram cenas muito exigentes e o mais difícil para mim foi gerir a energia ao longo de cerca de dois meses de filmagens sem falar praticamente uma única palavra de português no guião. A minha cabeça estava ocupada com inglês, a língua em que comunicava com a restante equipa, o alemão, a língua do filme, e crioulo, a língua que o personagem fala em certos momentos da história. Conseguir assegurar uma pronúncia credível do ponto de vista fonético e também emocional para a personagem Francis foi o meu maior desafio, sem dúvida.


Francis, personagem interpretada por Welket Bungué em “Berlin Alexanderplatz. © eOne Germany / Wolfgang Ennenbach


PTP O que significou para ti a nomeação na categoria de Melhor Actor no Deutsche Filmpreis?

WB Não fui o único nomeado, o filme teve 11 nomeações técnicas e artísticas. Foi muito gratificante e prestigiante [...] Percebemos que o filme tem qualidade, que o júri viu o filme com dedicação. Atribui-nos uma grande responsabilidade perante aquele que será agora o entendimento e a comunicação do filme para o público alemão daqui para a frente. Eu, sendo um cidadão natural da Guiné-Bissau, crescido e formado em Portugal e agora a circular por todo o mundo, ver-me nomeado naquilo que é, à falta de melhor termo, a primeira liga de actores e actrizes alemães, é um grande marco. Do ponto de vista da minha auto-estima, dos meus objectivos pessoais. A academia alemã veio dar-me um selo de qualidade que poderá ser observado por um público internacional e isso deixa-me bastante feliz e curioso para ver o que se seguirá no futuro.

PTP O teu colega Albrecht Schuch acabou por ganhar esta categoria num outro filme “System Sprenger”, de Nora Fingscheidt, bem como na categoria de Melhor Actor Secundário em “Berlin Alexanderplatz”. É um actor com uma considerável carreira em TV e cinema, como foi trabalhar com ele?

WB Ele é um actor incrível. É um actor muito íntegro e, mais do que isso, uma pessoa extraordinária pelo aspecto genuíno da sua personalidade. Eu sempre acreditei desde o início que quanto melhores pessoas, melhores actores. Isto é, quanto mais a pessoa tiver experimentado a sua persona em circunstâncias diferentes, tanto mais e melhor preparada estará para desempenhar personagens complexas [...] Já trabalhei com muitos actores muito talentosos e muito conhecidos, quer em Portugal, quer no Brasil, portanto o Albrecht não é o primeiro. Quando temos um bom parceiro no set, tanto mais nós teremos o desafio de potencializar as nossas próprias interpretações. Isso foi possível porque o nosso elenco está repleto não só de talento mas também de humanidade.



© Manuel Manso


PTP Estiveste recentemente em Portugal. Foste visitar a família ou também por motivos de trabalho?

WB Estive em Portugal logo após a Berlinale para visitar a família e também para estar presente nos prémios da Academia Portuguesa de Cinema [Prémios Sophia, entretanto adiados para Setembro de 2020], onde tenho o filme “Arriaga”, escrito e realizado por mim, nomeado como Melhor curta-metragem de ficção 2019. Fui também porque deveria ter estado presente no Festival Internacional de Leiria, onde iria mostrar e discutir três dos meus filmes. Infelizmente, com a pandemia estes eventos foram cancelados. Depois disso fui ao Brasil, onde passei mais dois meses e meio. Lá estive a editar duas curtas-metragens “Treino Periférico” e “Bustagate”.

PTP “Bustagate” está disponível na internet. O que te levou a pegar na história de Cláudia Simões e porque achas importante mostrar esta curta ao público de forma tão acessível?

“Bustagate” é um filme híbrido, que mistura textualidade e três narrativas visuais para contar e asfixiar o público, fingindo colocá-lo no mesmo lugar que a nossa defraudada sociedade, personificada pela nossa heroína Cláudia Simões. A curta surge um ano depois do incidente do Bairro da Jamaica, na margem Sul de Lisboa. Antes da estreia em festival, a crítica ao filme feita pelo website Hoje Vi(vi) Um Filme diz “Desde o sentimento de pertença/não pertença ao país que é nosso mas não nos tem como seus, ou ao país que nos acolhe mas onde há alguém que prefere usar da violência e do preconceito para não nos tratar como iguais, retirando direitos a quem os detém, ‘Bustagate’ clama a defesa dos que foram e ainda são oprimidos pela brutalidade retrógrada. Clama Liberdade, Igualdade e Justiça.” Assim sendo, decidi que a estreia do filme é assumida através das redes sociais, num momento em que o mundo clama por um sentido democrático de direitos que se desvanece, através de uma mobilização global massiva pelo movimento #blacklivesmatter que em Portugal despertou as silenciadas indignações da diáspora africana e portuguesa, que conhece bem o que é dor e perda. É um filme-intervenção póstumo ao personagem imaginário aqui chamado Pretugal (personificando o Luís Giovani Rodrigues), dedicado ao povo português (aos tradicionalmente “nativos” e aos descendentes do continente africano que nasceram aqui). Esta minha criação segue o assunto principal retratado no meu filme-manifesto “Eu Não Sou Pilatus”, de 2019 (Seleção Oficial DocLisboa - Competição Internacional).

PTP E o que nos tens a dizer sobre “Treino Periférico?

WB O filme foi criado, mais uma vez, para pensar o cinema, para compreender as falhas por remediar na nossa sociedade portuguesa. Foi feito com aguerrida perseverança e surge num momento necessário, porque não falo apenas de mim enquanto cidadão, mas dialogo com as performances de Isabél Zuaa e Bruno Huca. Está selecionado para a competição oficial do @cinekugoma Festival, em Maputo, Moçambique, de 24 a 30 de agosto. Foi feito na periferia da “grande Lisboa” e discursa poética e assertivamente sobre ocupação territorial, pós-colonialismo e desigualdade social ainda vigente na cultura portuguesa.

PTP São essas duas curtas os projectos que tens em mãos neste momento, portanto?

WB Sim, são esses os projectos em andamento neste momento. E estou a escrever também o meu primeiro livro, que espero poder publicar ainda este ano.

PTP De que trata o livro?

WB É autobiográfico e transdisciplinar (sobre cinema, performance, “artivismo”, e manifesto de conceitos homónimos para uma visão e atitude disruptivas), e ainda sobre empoderamento auto-consciente para uma intervenção social-cultural. Há a possibilidade de ser lançado no Brasil, mas ainda estamos a negociar. Em Portugal há a possibilidade de uma de duas editoras investirem na publicação do livro. Não posso avançar ainda nomes nem datas, mas tenho um bom feeling.

PTP De novo em Berlim, tiveste tempo de reflectir sobre como estes tempos estranhos que vivemos de COVID-19? Qual o impacto na tua vida e trabalho?

WB Bom, a realidade, globalmente falando, foi alterada por causa da pandemia do COVID-19 e tudo o que isso implicou. Em termos de mobilização, de leis, de aspectos de logística pública, social… Temos agora a acontecer também o “Black lives matter”, que se tornou um movimento globalizado [...] Isto são temas que agora estão nas bocas do mundo e que têm a ver com o meu trabalho, uma vez que o considero um trabalho disruptivo, que faz uso do cinema enquanto forma de expressão para questionar situações de desigualdade social que dizem sobretudo respeito à diáspora africana que vive nas áreas periféricas de Lisboa. O objectivo do meu trabalho é, de alguma forma, educar e sensibilizar as pessoas para situações que têm que ser denunciadas - situações de desigualdade social, de violência policial, que infelizmente acontecem pelo mundo todo, como sabemos, mas que eu registei em duas cidades especificamente: Rio de Janeiro e Lisboa

PTP Para finalizar, um apelo à comunidade lusófona da Alemanha que ainda não foi ao cinema ver “Berlin Alexanderplatz”?

WB Os cinemas agora só podem ter lotação de cerca de 35%, o que deixa bastante espaço para as pessoas se sentarem, não esquecendo que deverão usar máscara (risos). Terão cerca de três horas para desfrutar de um filme muito vibrante, que projecta uma Berlim surreal e muito viva, onde vemos interseccionadas várias realidades e vontades carregadas pelas diferentes personagens [...] Acho que o facto de um actor português-guineense estar neste elenco e representar esta personagem é uma alegria para nós e deve trazer-nos algum alento. Recomendo mesmo que voltem ao cinema. Isto é algo que tem vindo a acontecer a pouco e pouco, usem máscaras e mantenham-se protegidos. O cinema sempre foi um lugar de refúgio, portanto, agora mais do que nunca, faz sentido que exista este “templo”.

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