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Cancelar os cancelamentos


Gonçalo Galvão Gomes


"Compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas. Uma fera nunca pode ser tão cruel quanto um homem, tão artisticamente cruel."


Esta frase foi escrita por Fyodor Dostoievski numa das suas grandes obras "Os Irmãos Karamazov". Dostoievski nasceu em 1821, na capital do império russo e escreveu alguns dos melhores livros da história da nossa civilização como "Crime e Castigo", "O idiota", e "Os irmãos Karamazov". O imperador russo Nikolai II Alexandrovich Romanov, na tentativa de punir todos os intelectuais pouco alinhados com o regime, fez um cerco ao círculo Petrashevsky, um grupo progressista de intelectuais russos. Dostoievski, acabou por ser um dos membros a servir de exemplo. Inicialmente, recebeu uma sentença de morte, que mais tarde foi convertida em pena de prisão num campo de trabalho em Katorga, na Sibéria, e posteriormente em exílio permanente. Dostoievski foi oposição ao sistema ditatorial da sua época, como muitos russos se opõem hoje ao ditador que os governa, como muitos alemães se opuseram a Hitler e, como o escritor russo, pagaram por isso com a sua própria liberdade e alguns com a própria vida. A universidade de Milano Bicocca, em Itália, decidiu há umas semanas cancelar um curso sobre Dostoievski devido ao ataque da Rússia à Ucrânia e por um aparente rompimento com autores russos na sua universidade. Os responsáveis desta universidade acharam que a melhor forma de castigar o regime russo seria cancelar um autor conhecido por, entre outras coisas, o seu antagonismo para com regimes ditatoriais russos. Sabemos que as academias estão cheias de carreiristas, professores idiotas e intelectuais medíocres, mas esta ação foi de tal modo abominável que a universidade teve que se corrigir e reverter a sua instrução inicial. Parece que o curso vai mesmo continuar.

Por todo o mundo, maestros, bailarinos, cantores de ópera e atletas russos têm sido cancelados, despedidos ou banidos das suas posições. Alguns, devido ao seu conhecido apoio ao regime russo antes da guerra, muitos devido à falta de condenação pública da intervenção militar russa, todos pelo facto de serem cidadãos daquele país.


O cancelamento não se limita apenas aos que vivem, Yuri Gagarin, o astronauta soviético que foi o primeiro homem no espaço, teve o seu nome removido de uma fundação e a recolha de fundos em curso mudou de nome. O facto de ter falecido em 1968 parece não servir de desculpa para não ter condenado a guerra em 2022. Também os atletas paralímpicos russos, pessoas com deficiência, que se andam a preparar há anos para os jogos olímpicos de inverno foram cancelados. A melhor forma de atingir os mais fortes é seguramente punindo os mais fracos.


O principal argumento para justificar este cancelamento de pessoas com base no local onde nasceram, parece ser a sua posição pública em relação ao conflito. Primeiro que tudo, todo o cidadão russo tem que implorar perdão pelos crimes cometidos pelo ditador do seu país. Não importa se é a favor ou contra, se saiu da Rússia precisamente por discordar da política seguida pelo seu país ou se tem estado ingenuamente desconectado dos acontecimentos sociopolíticos da sua região. Se nasceu na Rússia é tão culpado como Vladimir Putin e merece ser punido por isso. Depois, há a já velha questão do “silêncio é violência”, que significa que se não reproduzirmos uma condenação à indignação do momento, é porque apoiamos entusiasticamente a injustiça em causa. Qualquer cidadão russo que não condene publicamente a ação do governo russo, é porque o apoia e mais uma vez, é responsável pela ação em si.


Como todos os ditadores, Vladimir Putin criou leis para castigar quem lhe fizer oposição, sendo que a última lei a ser aprovada pune todo o “claro desrespeito à sociedade, governo, símbolos estatais, constituição e instituições governamentais”, o que em termos práticos significa que todas as críticas ao governo ou às suas ações podem resultar em penas de prisão e multas que podem chegar aos 1.5 milhões de rublos, o que à data da publicação da lei era qualquer coisa como 20 000 euros. Obrigar cidadãos russos a fazer condenações públicas poderá significar que estes nunca mais possam voltar ao seu país, nunca mais vejam as suas famílias, ou pior, que sejam estas a pagar pelas suas ações. Quantos de vocês correriam este risco?

Não são apenas os ilustres a sofrer com o cancelamento, um pouco por todo o mundo, os pequenos negócios ligados à Rússia ou à cultura russa parecem estar a ser punidos pela guerra. O “Tapadinha”, o primeiro restaurante russo em Lisboa afirma ter perdido a maioria dos seus clientes. Num mercado livre os clientes são livres de tomar as suas decisões, incluindo a de não frequentar espaços que queiram evitar. Há o detalhe deste restaurante russo ser integralmente gerido por ucranianos e não ter sequer um funcionário russo no seu pessoal, mas não deixemos que a racionalidade atrapalhe as nossas sinalizações de virtude. Sabemos que Recep Erdogan, o presidente turco, que foi democraticamente eleito pelo seu povo, tem conduzido ao longo dos anos um ataque cerrado aos Curdos. É difícil prever o número certo, mas estima-se que milhares de curdos morreram devido aos ataques orquestrados por Erdogan, para além dos milhares de refugiados e destruição completa de áreas residenciais. Agora imaginemos o seguinte, todos os cidadãos turcos, assim como os russos, passam a ser responsáveis pela ação do seu governo. Cancelamos os artistas, os maestros, os investigadores, os desportistas e boicotamos os comércios de pessoas honradas que estoicamente contribuem para a nossa sociedade.

Claro que nada disto faz sentido, como não faz sentido punir os cidadãos russos pelo seu governo, como não faz sentido julgar pessoas com base na sua nacionalidade. Não há desculpa para o ódio, mesmo quando é seletivo.

“(…) É preciso amar, de facto, não por um instante, mas até ao fim.” Fyodor Dostoievski em “Os Irmãos Karamazov”

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