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A fábrica social e a emigração

As saudades das pessoas que deixámos para trás.

A falta que nos faz: a comida, o sol, o mar, o sorriso fácil das pessoas, o calor do nosso idioma materno…

As expectativas que não se cumprem ou tardam a cumprirem. O sentimento de pertença que nunca se realiza na plenitude.

Os amores que são desfeitos. A vida e todas as suas adversidades.


Gonçalo Galvão Gomes

Cabeça de lista ao círculo Europa nas eleições legislativas de 2015 e 2019


Era uma noite de outono alemão, fazia frio, mas eu e Carlos teimávamos em não deixar a meio, uma de tantas conversas, que tantas vezes nos prendem por mais horas do que razoabilidade sugere.


Estávamos os dois à porta da estação de comboio de Alexanderplatz, mesmo em frente à Fernsehturm, a emblemática TV Tower de Berlim. As ruas estavam pouco frequentadas, mas longe de estarem desertas. Caminhos iam-se cruzando, algumas pessoas quase em passo de corrida, como se as suas vidas dependessem de um relógio, outras, paradas, perdidas e sem destino aparente.


Uma das grandes surpresas para quem chega a Berlim, e que ainda me perturba apesar do hábito, é a coexistência, numa espécie de harmonia perversa, entre a riqueza da capital de um país desenvolvido e a mais absoluta miséria humana em todos os cantos. Há todo um conjunto de razões históricas e culturais que ajudam a entender, pelo menos em parte, este fenómeno, mas confesso que me falta talento e conhecimento para entrar por esse caminho. Também não é por essa razão que vos escrevo esta crónica.


Nessa noite, que podia ter sido uma noite como tantas outras, conheci o “Miguel”.


O Miguel é um emigrante português, como eu e como muitos dos leitores deste jornal.


Como nós, o Miguel saiu de Portugal para trabalhar no estrangeiro porque “queria ter um futuro melhor”.


Em poucos minutos, ele contou-nos a história da sua vida. Saiu de Portugal cedo e começou a trabalhar numa gelataria aqui na Alemanha. Falou-nos com orgulho do dinheiro que conseguiu amealhar e do carro que comprou, do facto de ter aprendido alemão e italiano logo no primeiro ano (quem sabe o que custa aprender a língua alemã entenderá a razão deste regozijo), e de já ter “muitos anos de descontos no sistema alemão”.


O Miguel comunicava de forma inteligível, num português claro e cuidado, simples, mas elegante. Era difícil precisar a sua idade, mas ele acabou por nos dizer que ainda não tinha 40 anos. Ao contar-nos a segunda parte da sua história, a sua expressão mudou. Segundo nos disse, a sua esposa estava grávida e teve um acidente numa viagem de automóvel, acabando por falecer quase de imediato.


Isso levou-o a uma depressão severa, que o aproximou das drogas, que o trouxe para a mendicidade.

Há cinco anos que o Miguel é um sem-abrigo.


É difícil discernir que partes desta história são reais e qual será a sua percentagem de ficção. Mas para dizer a verdade, pouco importa. O Miguel tomou más decisões na vida, estava num país que não era o seu, não tinha família por perto, provavelmente, não terá tido amigos ou as melhores companhias, e caiu no abismo.


A razão pela qual não me esqueci deste encontro e frequentemente recordo aquele dia, não é tanto pela situação em si, porque, como mencionei anteriormente, Berlim anda de mão dada com a decadência humana, mas mais do que tudo, porque vi o meu próprio reflexo nos olhos do Miguel. Pouco me separa daquele indivíduo.


Nascemos no mesmo país e na mesma cidade. Estamos próximos em idade. Escolhemos o mesmo ponto do mundo para viver. Partilhamos com certeza muitas experiências, vivências e quiçá, sonhos e expectativas.

É um facto que fizemos escolhas de vida muito diferentes, mas mais do que tudo, a fábrica social, a forma como a comunidade no seu todo (família, amigos, grupos sociais, etc.), nos apoiou, foi fundamentalmente diferente.


É demasiado fácil cair no abismo quando se vive num país estrangeiro. As saudades das pessoas que deixámos para trás. A falta que nos faz: a comida, o sol, o mar, o sorriso fácil das pessoas, o calor do nosso idioma materno…


As expectativas que não se cumprem ou tardam a cumprirem. O sentimento de pertença que nunca se realiza na plenitude. Os amores que são desfeitos. A vida e todas as suas adversidades.

É difícil ficar de pé, quando caímos sem ter onde nos agarrar.


Aquele episódio fez-me refletir profundamente sobre a importância da fábrica social na vida dos portugueses que vivem fora de Portugal. Fez-me pensar sobre os meus próprios privilégios e sobre a sorte que raramente me faltou.


Manter, valorizar e expandir o apoio para quem vive fora de Portugal, é de uma importância incalculável e não se pode resumir ao assistencialismo. Os grupos, as organizações, a divulgação cultural e os milhares de pessoas que dedicam a sua vida a manter ativo esse elo de ligação, são os heróis que o país tarda em reconhecer.


Claro que não existem panaceias ou remédios milagrosos para problemas com esta complexidade, mas uma comunidade forte, onde a entreajuda e a compaixão estão presentes, criará garantidamente alguma imunidade. Cabe-nos a nós cultivar e promover essa comunidade.


Vamos a isso?


Foto Florian Wehde - Unsplash Ilustração: Kardo

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