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A arte na guerra


Miguel Szymanski

Este Domingo fui com as minhas filhas ao museu dedicado a um dos mais importantes artistas portugueses do século XX, Maria Helena Vieira da Silva.

No edifício da fundação da pintora, numa das praças mais bonitas de Lisboa, entre o Largo do Rato e as Amoreiras, onde terminam os arcos do aqueduto, está uma exposição com obras de muitos outros nomes maiores da artes, Almada Negreiros, Souza-Cardoso, Eloy ou Pomar. Estaquei em frente a uma tela, um cenário dentro de uma tenda de circo, em tons verdes, de António Quadros. A vida às vezes é assim, marcada por espectáculos, tristes e patéticos, deprimentes, que se repetem, entre contorcionistas e palhaços, funambulistas em equilíbrio precário, cães danados e o rufar de tambores.

Mas a obra que mais tempo me prendeu foi outra. Uma instalação a que não teria dado grande atenção, se a Europa não estivesse como está. Em guerra. Duas bolas de vidro pintadas, a têmpera vinílica, uma preta, outra branca, entre elas uma tábua de madeira com espelhos de ambos os lados. Não sei qual a intenção de Noronha da Costa, o seu autor em 1967. Mas sei o que significou para mim. As guerras. Ou melhor, como olhamos para elas.

Às vezes só vemos um lado, noutras só outro. Às vezes as coisas parecem-nos ser a preto e branco, mas olhamos melhor, andamos à volta, aproximamo-nos, vemos reflexos, e percebemos que metade do tempo só espelham o que já vimos, ou ocultam o que não vemos, e que, tirando umas películas de tinta, as coisas até podem ser mais iguais do que diferentes.

Depois há quem fique na mesma posição, a olhar para o que lhe puseram à frente, quem permaneça à mesma distância, imóvel, e tenha a certeza que todas as outras pessoas à sua volta estão erradas.

Não há agressores e invasores bons, nunca houve. Putin é um criminoso de guerra como o são, do ponto de vista técnico e moral, em maior ou menor escala, a maioria dos presidentes dos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial, para não recuar mais (200 mil civis mortos só Hiroshima e Nagasaki, depois Vietname, América do Sul, Iraque, Afeganistão, etc..).

Henry Kissinger, o político e estratega que mais marcou a política externa dos EUA, conselheiro de presidentes, de Nixon a George W. Bush, escrevia em 2014 no Washington Post:


"Para o Ocidente a demonização de Putin não é uma política, é o álibi por não ter uma política".


Kissinger - nunca ouvi ou li alguém acusá-lo de ser ingénuo ou pró-russo - alertou várias vezes para o risco de guerra por se ter cercado a Rússia militarmente e de se ter promovido a ideia da adesão da Ucrânia à NATO.

Basta olhar para as guerras dos últimos 20 anos, não é preciso recuar mais, para se perceber que não faz sentido distinguir entre 'guerras boas' e 'guerras más'. Num país há, ou não há, armas de destruição em massa. Noutro país há, ou não há, armas químicas e biológicas. Numa cidade há 'islamitas' a espalhar terror, noutra 'nazis'; num país são soldados russos que matam, noutros países os soldados são norte-americanos, árabes, israelitas, etc.

Os meus trisavós fugiram dos russos, da Galícia, na actual Ucrânia, para a Boémia, na actual República Checa, no final do século XVIII. Na guerra de 1914 a 1918 o meu avô, que era médico do exército Austro-Húngaro, combateu os russos, a tratar soldados com garrotes e uma serra de amputações. Em 1945, com 11 anos de idade, o meu pai fugiu de mão dada com a mãe do exército soviético, numa fuga do leste da Europa em que morreram mais de 600 mil pessoas - mulheres, crianças, velhos - de fome, de frio, afogadas, assassinadas. Mais tarde, já adulto, fugiu da RDA, controlada militar e politicamente por Moscovo. Mas não é isso que divide o mundo em bons e maus.

Agora, em Portugal, o sofrimento dos refugiados de guerra chegou às nossas casas. Como se o fenómeno tivesse começado há três semanas. Em 2021 havia no mundo 84 milhões de refugiados. Este ano, com a invasão da Ucrânia, chegaremos talvez aos 90 milhões. Todos os anos, independentemente de mais esta guerra, morrem milhares de civis em dezenas de países, vítimas de agressões militares alimentadas pela indústria de guerra dos EUA, da Rússia e da UE (os maiores exportadores de armas do mundo por esta ordem).

Tenho amigos ucranianos em Portugal, amigos que abraço, com quem falo e sofro, todos os dias, porque os seus filhos estão na guerra. Mas não pode haver civis que fogem da guerra 'de primeira' e civis que fogem da guerra 'de segunda'. Não pode haver vítimas que abraçamos e vítimas que desprezamos.

Em Marrocos, nosso país vizinho, há dezenas de milhares de refugiados de várias guerras. A Europa paga para os manter atrás de arame farpado. Na fronteira da Polónia com a Bielorrússia, a polícia corre actualmente com os refugiados do Afeganistão e da Síria para fora da UE. À pancada . Mas hoje, uma deputada polaca, do partido que se recusava, até há três semanas, a receber civis em fuga de etnias não europeias, dizia sobre a actual e admirável onda de solidariedade, numa entrevista de rádio: "Os ucranianos são seres humanos, como nós". Por cá, Pedro Santana Lopes, um ex-primeiro-ministro e ‘artista’ português, descrevia no Twitter, comovido, uma refugiada ucraniana a quem dava beijinhos, na fotografia que colocou nas redes sociais. “A receber a Dasha, lourinha de olhos azuis

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